Por Ricardo Cravo Albin

“Não peça coerência ao mistério, nem peça lógica ao absurdo”. – Lygia Fagundes Telles, 1985.

Lygia Fagundes Telles morreu às vésperas de completar 99 anos (dia 19 de abril), no dia 3 de abril. Com ela, todas suas “As meninas” e todos seus “Filhos Pródigos” adentraram ainda mais onde já estavam alojados na posteridade da literatura do Brasil. Lygia chegou quase aos cem anos de eternidade portando obra densa e única. Não pela quantidade até discreta da obra, antes pela essência do refinamento e do definitivo de sua forma literária.

Sua escrita sensibilizou e tocou os corações de ao menos três gerações de leitores, por propor as convergências do obscuro da mente humana, além da elegância do texto e da defesa da mulher. Ao lado de suas “meninas” florescentes e de seus pródigos “filhos”, Lygia deposita os signos e as setas de seu espírito criativo em obras definitivas como “Ciranda de Pedra”, “A Noite Escura e mais eu”, ou “As horas Nuas”, de 1989, que abre a percepção para a natureza da própria autora.

Conheci Lygia muito bem, e nos víamos com frequência nos círculos literários e cinematográficos do Rio e São Paulo. Sobretudo a partir do momento em que Paulo Emílio Salles Gomes se tornou meu conselheiro preferencial de cinema no Museu da Imagem e do Som. O casal Lygia e Paulo Emílio refulgia na ação intelectual, no conhecimento da cultura verdadeira, na árdua tarefa de reconhecer os talentos meritórios, destinando certo (mas sempre elegante) desprezo às imposturas que pulavam no nosso meio.

Lygia – como todas as pessoas sábias – orgulhava-se de suas origens, da infância em Descalvado, interior de São Paulo, da presença paterna, o promotor de justiça Durval Fagundes (casado com a pianista Maria do Rosário Silva Jardim), de sua graduação em direito nas Arcadas da USP no Largo de São Francisco (por onde passaram Castro Alves, Álvares de Azevedo ou Fagundes Varella), de seu primeiro casamento, “et pour cause”, com o celebre jurista Goffredo da Silva Telles Junior, com quem teria um filho.

Voltando às lembranças do casal Lygia e Paulo Emílio aqui no Rio, ela me pediu certa vez que organizasse uma tertúlia com meu amigo Humberto Mauro porque o casal queria estar com o desbravador da estética do cinema no Brasil. O doce encontro varou a noite e só se encerrou aos primeiros raios do novo dia. Lygia, com assentimento de Paulo Emílio, cunhou para Mauro um pedido, nunca atendido por sinal: “Mauro, peço aqui ao Paulo que roteirize meu último conto para você transformar em filme. Topas?”. Todos erguemos um brinde à futura parceria de três gênios. Que deu em nada, apesar das cobranças posteriores de Lygia, que se estribavam no roteiro de ambos para Capitu, baseado em Dom Casmurro de Machado d e Assis.

Agora recuperado pelo centenário da Semana de Arte Moderna, outro interessantíssimo livro da escritora paulista foi “Depois daquele chá”, sensível tessitura literária em que ela recorda conversas com Mario e Oswald de Andrade.

Lygia estreou em 1944, com os contos de Praia Vila, aos 21 anos, e seria a terceira mulher a adentrar a ABL, logo depois de Rachel de Queiroz e Dinah Silveira Queiroz. Mas a primeira na Academia Paulista de Letras.

Certamente que Ciranda de Pedra viria a ser sua obra mais popular. A tal ponto que geraria duas novelas da TV Globo com o mesmo nome (em 1981 e 2008) e chegou a ser reconhecida por Lygia como sua maturidade literária. Aliás, a escritora sempre foi muito exigente com a qualidade sensorial e formal do que escrevia. Teria declarado certa vez que seus quatro primeiros livros jamais seriam reeditados enquanto vivesse.

Lygia de fato sempre foi exemplar nos contos. Como contista, recebeu três Jabutis por “O Jardim Selvagem” (1966), “A noite escura e mais eu” (1996) e “Memória” (2001). Mas também irretocável nos romances. O Jabuti de Melhor Romance chegou com “As meninas” (1973), escrito como um testemunho sobre a ditadura militar. É corajoso, a ponto tal de descrever uma sessão de tortura. O romance surpreendentemente não foi embargado pela censura. Aliás, sua atividade cívica se fez notar também quando liderou em Brasília uma comissão de artistas para entregar ao terrível ministro Armando Falcão um manifesto assinado por 1.046 intelectuais contra a censura.

Lygia Fagundes Telles era ademais uma bela figura de mulher, cujo perfil grego era arrebatador. Quando eu lhe repetia que houve duas mulheres escritoras cuja beleza física se realçava na literatura, ela e Cecília Meirelles, Lygia, aparentemente exibindo certo desdém, me questionava baixinho:

“Deixe de conversa fiada. Foi o Paulo Emílio quem lhe soprou tal invencionice?”.

Lygia Fagundes Telles no dia da posse na Academia Brasileira de Letras. Na ordem: Jorge Amado, Lygia Fagundes Telles e Lêdo Ivo, na primeira fileira da esquerda para direita, secundados por Eduardo Portela e Rachel de Queiroz. (Crédito: ABL)

P.S.1 – Lygia Fagundes Telles, aclamada como a grande dama da literatura brasileira, cultuava sua paixão pelos gatos. Tal como Ruy Castro, que acaba de ganhar o Prêmio Machado de Assis da ABL. Essa convergência em torno do mesmo tema faz veicular a possível inscrição do Ruy para a vaga agora aberta por Lygia.

P.S.2 – Gilberto Gil se empossa nesta sexta na ABL. Tanto quanto na posse de Fernanda Montenegro, o Governo do Rio através de Claudio Magnavita determinou à Rádio Roquette Pinto que transmitisse ao vivo a cerimônia.

A emissão do discurso de posse de Fernanda foi um sucesso e um gol de originalidade na radiofonia carioca. Imagino o quanto Gil arrebentará na audiência.

RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.


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