Por João Marcos Buch

De acordo com a Lei de Execução Penal, quando alguém é submetido à custódia do Estado, por meio do Estado-juiz, o resultado é que a obrigação de se fornecer a esse alguém condições mínimas de vida, envolvendo alimentação, vestuário, acomodação, ensino, profissionalização, tudo que não tenha sido restringido pela medida judicial, principalmente pela sentença condenatória, é determinante. Pontualmente sobre o trabalho e a educação, como método de qualificação, segundo a lei, o objetivo é não prejudicar a pena mas sim atender ao fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana.

A regra 4 das Regras Mínimas das Nações Unidas para Tratamento de Reclusos (Regras de Mandela), da qual o Brasil é aderente, estabelece que as administrações prisionais e demais autoridades competentes devem proporcionar educação, formação e trabalho, no sentido de permitir a reintegração das pessoas presas de volta na sociedade após sua libertação, com possibilidade de levarem uma vida autossuficiente e de respeito para com as leis. E mais, a regra 96 do citado diploma consigna o direito de todo o condenado ter acesso e oportunidade de trabalho, no sentido de promover sua reabilitação, prevendo a regra 98 que esse trabalho deve, tanto quanto possível, propiciar aumento das capacidades dos reclusos, no sentido de ganharem honestamente a vida depois de libertados.

De plano percebe-se portanto que o objetivo da lei é, por meio especialmente do trabalho e do estudo, fazer com que o condenado retorne à liberdade em harmonia social.

Por outro lado, entre as funções da pena está a oficialmente declarada prevenção. A sanção seria justificada para ressocializar e reeducar o “delinquente”, intimidar os que não teriam como se ressocializar e finalmente neutralizar os “incorrigíveis”.

Dito isso, é evidente que na realidade concreta do Brasil de 2021, a lei tem sido ignorada, assim como a Constituição e os tratados e pactos internacionais sobre direitos humanos. Nunca se oportunizou trabalho e estudo aos presos, ressalvadas raras exceções aqui e acolá, assim como a pena nunca teve função ressocializadora, mantendo somente as funções intimidadora e neutralizante, como projeto político de controle dos indesejáveis.

O perfil dos presos no país, cujo racismo estrutural faz com que sejam em sua maioria negros e pobres — isso sempre precisa ser dito — é composto na quase integralidade por quem não concluiu o ensino fundamental ou médio. Muitos não desenvolveram habilidades para o trabalho e chegaram à maioridade, desprovidos da presença das instituições.

Essas pessoas, ao longo de suas histórias, acabaram empurradas para a margem, para a miséria, para a violência. Suas existências foram posicionadas num lugar de não ser, de inessencial, de objeto. Quando elas saíram da invisibilidade e se lançaram sobre os incluídos, então se confrontaram com o estado, um estado que se apresentou exclusivamente com seu braço penal, controlador, punitivo, que logo as trancafiou em calabouços e tatuou em suas testas o estigma eterno dos condenados. Na prisão, entre ordens e disciplinas, as normas que objetivam algum resgate humano e de dignidade são ignoradas. Não há oferta de educação, de cultura, de formação. Quanto ao trabalho, nas poucas ocasiões em que algum é propiciado, trata-se de um ofício que serve, para além de qualificar, especialmente para reproduzir exploração durante e depois do retorno à liberdade.

Nesse andar, a fragilidade principal do argumento da ressocialização reside no fato de que esta se origina a partir de uma ideologia sustentada numa sociedade igualitária, de moral inabalável, numa sociedade ideal. Se um sujeito se desvia, o ato é tido como algo individual, sem relação alguma com a estrutura social a que ele é originário. O desviado, assim, logo passa a ser tratado como “o delinquente”, com a “marca de Caim”, o monstro imoral e odioso, o pária. Há um nítido maniqueísmo, portanto, nas bases da ressocialização, em que “existem os bons e os maus”, numa clara divisão. A ideologia ressocializadora se baseia na falsa premissa de que a sociedade é perfeita e não baseada em um sistema de justiça criminal que volta os olhos apenas para aquela parcela da população que provem de uma história de sucessivas negações de direitos e dignidades.

O fato é que não se ressocializa quem nunca teve oportunidades para crescer e viver como cidadão, sujeito de direitos e deveres, com inclusão social e econômica, em solidariedade.

Por isso tudo, é preciso acabar com a ideia de que a ressocialização ocorrerá dentro do cárcere, pois ela é, repita-se, uma cortina de fumaça para a reprodução da violência e da neutralização dos indesejáveis.

Mas, uma vez superada essa questão, de que a ressocialização é um mito, chega-se ao segundo ponto deste texto, qual seja, a de que o mundo real não é uma palestra, uma tese acadêmica ou uma estatística!

Como juiz da execução penal e, portanto, um dos atores da justiça criminal e do sistema penitenciário, tendo a consciência de que a ressocialização não existe, nunca existiu e nunca existirá, sempre que transponho os portões da cadeia para inspeções e audiências e aos presos me dirijo, o que ouço são súplicas pelo cumprimento da lei, por trabalho, educação e saúde. E a resposta a essas súplicas não pode ser a acadêmica, de que a ressocialização é um mito, que o sistema é assim mesmo, uma máquina de moer gente, que a luta é pela superação da cultura do encarceramento, por alternativas penais, num estado de bem-estar social, onde desde a primeira infância as oportunidades existam e a dignidade da pessoa seja inegociável, irrenunciável e respeitada.

Quem está preso, sem um colchão para dormir ou um sabonete para tomar banho, sem um remédio para aplacar uma dor de dente, precisa de respostas e ações imediatas. Além disso, uma oportunidade pode resultar, sim, que o apenado saia do ciclo da miséria e da violência. Exemplos disso não faltam.

Então, ao sair da prisão, sempre o faço com a sensação de que, apesar de não acreditar no sistema, acredito no ser humano.

Por isso, exigir do estado que cumpra a lei de execução penal, que garanta um mínimo existencial para os encarcerados, reduzindo os danos do aprisionamento, é um dever inafastável a todos os atores jurídicos. A ressocialização é um mito, mas diante da realidade posta, até que evoluamos em nossa civilidade, estamos condenados a lutar por ela.


JOÃO MARCOS BUSH é juiz de direito da vara de execuções penais da Comarca de Joinville (SC) e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD). A coluna ‘Tribuna dos Juízes Democratas’, dos juízes e juízas da AJD, é associada à coluna ‘Clausula Pétrea’ do justificando.com