Por Carlos Mariano

Em meio à indefinição sobre a realização ou não dos desfiles das escolas de samba, que a princípio estão previstos para acontecerem somente em 2022, as escolas de samba tentam sobreviver ao caos da crise sanitária e econômica causada pelo Covid-19 e pela incompetência do governo Federal.

A Unidos do Viradouro, campeã do último carnaval carioca, vem desenvolvendo seu projeto visando o próximo desfile. A disputa de samba-enredo está em andamento com a participação virtual de dezenove sambas. Como força do ofício e por ser amante do gênero samba-enredo, claro que fui escutar a safra de concorrentes da Vermelha e Branca, de Niterói. E logo de cara, me encantei com o samba da parceria que é liderada pelo excelente compositor e amigo, Felipe Filósofo.

O enredo da Viradouro para o próximo carnaval será “Não há tristeza que possa suportar tanta alegria”. O principal mote desse enredo, assinado pela excelente dupla campeã de carnavalescos da escola Marcus Ferreira e Tarcísio Zanon, é mostrar a importância social e histórica do Carnaval de 1919 para a sociedade carioca da época, superar o trauma do isolamento social provocado pela pandemia de gripe espanhola que assolou o Brasil e o mundo um ano antes.

A gripe espanhola foi uma mutação do vírus Influenza. Apesar de ter esse nome, não começou na Espanha. Ganhou essa alcunha na época, pelo fato de a imprensa espanhola ter divulgado com mais ênfase as notícias da gripe pelo mundo. O fato é que a gripe matou muita gente, e foi agravada pelo advento da Primeira Guerra Mundial que, também, ceifou muitas vidas e arruinou a economia mundial.

Pegando o gancho com o momento atual e maior crise sanitária de nossa história, os carnavalescos da Viradouro desenvolveram seu enredo com o propósito de nos mostrar como a festa de Momo foi extremamente importante para o psiquê do povo. No sentido de ajudar a superar o trauma da pandemia e projetando para a nossa realidade, com vistas ao próximo carnaval após a pandemia de Covid 19, a festa, fatalmente, será marcante e importante para nossa superação e retomada da vida.

O Carnaval de 1919, considerado o melhor de todos os tempos, ficou conhecido como o carnaval da revanche, pois o povo voltava, com alegria, a retomar sua vida. Também marca o surgimento de uma das agremiações carnavalescas mais tradicionais do país, o Cordão do Bola Preta.

No fim de 1918, Álvaro Gomes de Oliveira, mais conhecido por K. Veirinha, apelido adquirido pelo fato de ter conseguido escapar da gripe espanhola embora tenha ficado bastante magro. Um amigo maldoso de copo de bar, vendo-o em tal estado, disse: “Você parece uma caveira.” Batizado de K. Veirinha, Álvaro e uma turma de boêmios carioca, peitaram as normas da polícia da época, que proibiam o surgimento de novos cordões. Levantaram os copos e fundaram, na noite de 31 de dezembro de 1918, o famoso Cordão do Bola Preta.

Toda essa história envolvendo pandemia, cultura popular e carnaval, e que se assemelha muito com o atual momento que estamos vivendo, a Viradouro irá contar na passarela no próximo carnaval – como e quando vier.

Dos dezenoves sambas que disputam as eliminatórias para o próximo carnaval na Viradouro, quero destacar para análise, o samba da parceria Felipe Filósofo, Fábio Borges, Ademir Ribeiro, Deivid Gonçalves, Lucas Marques e Porkinho. O samba traz várias inovações proporcionadas pela riqueza do próprio enredo. A inovação, que mais chama atenção logo de cara, é que o samba foi escrito e narrado em formato de uma carta de amor, escrita por Pierrot à Colombina.

O casal, como todos sabemos, é um dos ícones do imaginário carnavalesco. Só que na sensibilidade genial da parceria, Pierrot e Colombina, são personificados no samba, não com a simbologia original, de casal apaixonado do triângulo amoroso (entre os dois e Arlequim) mas, são metaforizados poeticamente no samba. Pierrot passa a representar todos nós, foliões, e a Colombina, o próprio carnaval. Tal passagem emocionante do samba eu transcrevo, abaixo:

“Tirei a máscara no clima envolvente
Encostei os lábios suavemente
E te beijei na alegria sem fim
Carnaval, te amo na vida és tudo pra mim

Assinado: Um Pierrot apaixonado
Que além do infinito o amor se renove
Rio de janeiro, 5 de Março de 1919”.

Os compositores, nos versos acima, retratam com rara beleza poética e melódica, a importância do carnaval na crise sanitária de 1919 e no pós-guerra, no psiquê das pessoas. O povo foi loucamente para às ruas não somente para pular mais um carnaval, mas ressurgir das cinzas, agradecer por ter sobrevivido às barbáries da peste e da guerra. Tal passagem do samba reforça também a ideia original de carnaval, como expressou Mikhail Bakhtin, na sua monumental obra “A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento”: “Na verdade, o Carnaval ignora a distinção entre atores e espectadores, também ignora o palco, mesmo na sua forma embrionária, pois o palco teria destruído o carnaval (e inversamente, a destruição do palco teria destruído o espetáculo teatral). Os espectadores não assistem ao carnaval, eles o vivem, uma vez que o carnaval, pela sua própria natureza, existe para todo o povo. Enquanto dura o carnaval, não se conhece outra vida senão a do carnaval”.

Outro aspecto inovador e interessante no samba da parceria de Filósofo, é que a melodia traz uma questão que é do som à imagem. A melodia nostálgica em forma de “valsa” (uso de flauta no samba) nos remete a 1919, ano em que se passa a história do enredo, vale lembrar que, no carnaval de 1919, o samba negro sincopado, criado pelos bambas do Estácio, que também originaria as nossas queridas escolas de samba, só iria nascer quase dez anos depois, no fim da década de 1920. Portanto, a melodia do samba de Filósofo e parceria, recupera a estética da sonoridade da época. Sonoridade esta, que é uma mistura de valsa, modinha, lundu e maxixe.

Sonoridades que ajudaram a forjar não só a música carnavalesca brasileira mas, também o que se convencionou chamar de MPB (Música Popular Brasileira).

Outras duas inovações importantes trazidas pelo samba dessa parceria são que ele possui também todas as suas rimas com classe gramaticais diferentes e também rompe com o paradigma das rimas ABAB, para privilegiar a estrutura AABB (rimas emparelhadas).

Como a gente sabe, disputa de samba-enredo é algo imprevisível de prever e apostar. Mas, eu estou torcendo muito para que a Unidos do Viradouro escolha a obra de Filósofo e companhia como seu hino para o próximo Carnaval. Primeiro, por ser o mais bonito na disputa e, em segundo, pela inovação que ele traz. Não se trata de uma “inovação pela inovação”, mera moda. Ela surge para contemplar magistralmente o excelente e original enredo escrito pelos carnavalescos da Viradouro.

Independentemente da escolha, a composição em questão já entra para a história do samba-enredo pela sua ousadia de sair da mesmice.


CARLOS MARIANO – Professor de História da Rede Pública Estadual, formado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisador de Carnaval, comentarista do Blog Na Cadência da Bateria e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.