Por Ricardo Cravo Albin

Essa mania que as pessoas têm de sempre escolher o superlativo de tudo, o melhor disso, a melhor daquilo, pode causar muitos embaraços. Quando não, constrangimentos. Ou – o pior – até injustiças cortantes. Ainda há pouco, num programa de tevê, recusei-me a responder quem era a maior cantora da MPB. Aí, a entrevistadora lascou a pergunta pérfida: “Elis Regina, Gal Costa, Ângela ou Dalva?” Minha resposta foi outra pergunta: “E onde fica Elizeth Cardoso?” Na simples indagação, a esperta repórter obteve a resposta, dada quase sem consentimento. Portanto, fanzoquismo à parte e sem querer meter minha colher nesse campo minado de arapucas, ou dualidades, quero daqui saudar Elizeth Cardoso, cujos 12 anos de morte foram muito falados.

E inicio com uma afirmação bombástica, a de que nunca ouvi uma cantora que juntasse com precisão três itens básicos – emoção, voz e equilíbrio – para entoar qualquer canção. Que poderia ir de um “É luxo só (feita por Ary Barroso expressamente para ela) até um “lied” de amor mais sofisticado como os deslumbrantes “Melodia sentimental” (de Villa-Lobos, versos de Dora Vasconcellos) ou “Estrada branca” (de Tom e Vinícius).

“Uma prima-dona desse porte deveria ser insuportável” – poderia pensar alguém menos informado sobre os segredos da MPB. Não, não era. Elizeth era exigente – mas na medida certa – com ela mesma. Mas nunca ultrapassava os limites do bom senso ou mesmo da boa educação – e até da dignidade – para obter aquilo que quisesse. Lembro-me que, quando meti na cabeça que tinha de transformar em elepê o belo recital do João Caetano, em que ela atuou para o MIS ao lado do Jacob do Bandolim e do Zimbo Trio, Elizeth não queria que eu produzisse o disco por uma simples razão. Ela havia errado duas palavrinhas de uma das letras. Docemente me telefonou e disse: “Você vai gravar um outro show meu e pronto. Aí pode editar um elepê meu pelo Museu.” Dois dias depois visitei-a em casa só para convencê-la a não privar a posteridade daquele momento magnífico em emoção e garra. Ela observa a paixão com que eu argumentava e pontificou: “Vou deixar sair o disco porque essa insistência toda não é para ir pro bolso de ninguém, só para sustentar o Museu. Mas que eu errei, eu errei. Edite logo essa bobagem e deixe de chorumelas.”

Essa bobagem, a que Elizeth se referia, acabaria virando um dos elepês duplos mais eloquentes de toda a era do vinil. Meses depois, quando mandei os discos para muitos exilados no exterior, Elizeth recebeu um telefonema de Darcy Ribeiro. Da Europa, Darcy lhe disse, quase em lágrimas, que o Brasil estava enfiado nas suas veias através daquele som.

Elizeth me contou o episódio indisfarçavelmente feliz, mas acrescentou com olhar maroto: “É que ele não percebeu os meus erros na letra. Cruz-credo!” Assim era a divina Elizeth, nobre como amiga e fidalga como cantora.

Não sei, com toda sinceridade, se há como apontar substitutas para Elizeth Cardoso nesses tempos vertiginosos.

Cadê aquela voz redonda e cálida, vinda sutilmente de sua mulatice? Cadê a emissão na precisão das notas? Cadê a maciez nos graves e nos agudos? Cadê aquele porte de rainha, tão natural e espontâneo?

Não e não! Não ouso — um século de seu nascimento – fazer qualquer comparação com qualquer outra cantora de agora. Quem sabe nos próximos 100 anos? Ainda assim duvido muito…


RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin,  Colunista e Membro do Conselho Editorial do jornal Tribuna da Imprensa Livre.