Por Cláudia Maria Dadico –
“Em matéria de desinformação e notícias falsas, ainda há um longo caminho para se trilhar”
Em recente decisão, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) determinou a remoção das redes sociais de vídeo gravado pelo vereador de Belo Horizonte Nikolas Ferreira do PL, em que associa o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a uma série de crimes e práticas ilícitas e imorais. O conteúdo também foi divulgado nos perfis dos deputados Eduardo Bolsonaro, Carla Zambelli e do senador Flávio Bolsonaro.
Em sua fundamentação, a decisão proferida pelo ministro do TSE Paulo de Tarso Sanseverino destaca: “… é forçoso reconhecer que o vídeo divulgado foi produzido para ofender a honra e a imagem de candidato ao cargo de presidente da República, cujo objetivo consistiu na disseminação de discurso manifestamente inverídico e odioso que pretende induzir o usuário da rede social a vincular o candidato como defensor político das práticas ilícitas e imorais acima mencionadas”.
Sobre a decisão, o vereador Nikolas, que foi o deputado federal mais votado do país, com quase 1 milhão e 400 mil votos, postou em seu perfil no Twitter: “Está em fase de defesa, mas caso venha a deletar, o vídeo, só no instagram, atingiu 30 milhões de visualizações. O TSE ainda não consegue fazer as pessoas ‘desverem”. O recado foi dado”, afirmou.
Em que pese o evidente tom de deboche e desrespeito à justiça eleitoral, o político parece estar certo.
Ainda que a Justiça Eleitoral já tenha desenvolvido mecanismos para dar maior agilidade às suas decisões, a verdade é que, apesar de tudo, o crime ainda parece compensar.
Como desfazer o dano gerado por mais de 30 milhões de visualizações em apenas uma das redes sociais utilizadas pelo político mineiro? A multa diária de R$ 50 mil imposta como sanção em caso de desobediência à ordem judicial pode dissuadir a continuidade da conduta, mas não é suficiente para reparar os danos reputacionais que, em casos de pleitos altamente disputados, como o presente, podem ser determinantes para o resultado.
E o que dizer da senadora eleita Damares Alves que se utilizou de uma pregação em culto religioso para difundir versões fantasiosas, grotescas e repugnantes de fatos envolvendo violência sexual contra crianças, com a finalidade de reforçar sua mirabolante tese de que as eleições traduzem uma “guerra espiritual”, em discurso maniqueísta com o qual pretende apoiar seu candidato, lançando mão das mais baixas e vis argumentações.
Seu discurso já teve, igualmente, milhões de visualizações no YouTube.
Esses exemplos demonstram que, em matéria de desinformação e notícias falsas, ainda há um longo caminho para se trilhar, rumo a um enfrentamento verdadeiramente eficaz, proporcional à velocidade e à magnitude do volume de compartilhamentos.
Enquanto isso, o debate eleitoral vê-se cada vez mais empobrecido. Ao invés de se discutir projetos, propostas, grandes temas nacionais, desigualdade, soluções para problemas econômicos, inserção do Brasil na ordem internacional, os noticiários são pautados pelo debate instalado em torno dessas verdadeiras aberrações.
Os eleitores são atraídos para armadilhas fantasiosas e sensacionalistas, recheadas de detalhes sórdidos e discursos apelativos, que desviam o foco daquilo que realmente deveria ser alvo de atenção durante o processo de escolha dos governantes de um país com as dimensões e a relevância do Brasil.
As principais vítimas da desinformação são, portanto, o eleitorado e, por consequência, a qualidade da democracia brasileira, já que a inviabilização de candidaturas com base em distorções e mentiras pode prejudicar, de forma irreversível, seu próprio funcionamento.
Se há notórias dificuldades na atuação das instituições “a quente”, ou seja, a tempo de evitar maiores danos de forma célere e ágil, antes das “milhões de visualizações” inerentes ao ritmo frenético das redes sociais, cabe indagar sobre possíveis responsabilizações posteriores.
De acordo com o artigo 14, § 9º da Constituição Federal, qualquer pessoa pode tornar-se inelegível quando se verificar o comprometimento da normalidade e da legitimidade das eleições por influência do poder econômico (§ 9º). Mesmo depois de eleita, qualquer pessoa pode vir a ser impedida de diplomar-se ou mesmo perder seu mandato depois da diplomação, em casos comprovados de abuso do poder econômico, corrupção ou fraude (art. 14, § 10).
Vê-se, portanto, que a proteção do processo eleitoral contra práticas abusivas e fraudulentas tem base constitucional.
A Lei Complementar nº 64, que regulamentou o mencionado artigo 14, prevê a possibilidade de que os partidos políticos, coligações, candidatos ou o Ministério Público peçam a abertura de uma investigação judicial para apurar o uso indevido de “veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou partido político” (art. 22).
Foi exatamente com base nesse dispositivo que o deputado federal Fernando Francischini foi declarado inelegível e teve seu diploma cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral.
Naquele julgamento, confirmado pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, o TSE considerou grave a conduta de publicar uma live na qual o candidato apregoava uma série de inverdades em relação às urnas eletrônicas e ao sistema eletrônico de votação. A mencionada live teve grande repercussão, tendo a audiência de aproximadamente 70 mil pessoas, mais de 105 mil comentários, 400 mil compartilhamentos e seis milhões de visualizações.
Desse importante julgamento extraem-se ao menos duas importantes conclusões.
A primeira conclusão: não há nenhuma dúvida de que as redes sociais podem ser consideradas como veículos de comunicação social, para fins eleitorais.
Sobre a questão, o voto do Ministro Luís Felipe Salomão é bastante didático: “é fato notório que as Eleições 2018 constituíram verdadeira ruptura na forma de realizar campanhas. Sem emitir juízo de mérito acerca das estratégias de candidatos e legendas, tenho que as últimas eleições gerais representaram marco que se pode denominar como digitalização das campanhas. As vantagens são evidentes: os atores do processo eleitoral, utilizando-se dos mais diversos instrumentos que a internet propicia, podem se comunicar e angariar votos de forma mais econômica, com alcance ainda mais amplo e de modo personalizado mediante interação direta com os eleitores”.
O uso abusivo das redes sociais, portanto, pode ensejar a sanção de inelegibilidade, segundo o TSE.
A segunda conclusão: o candidato que se vale de seu poder político para beneficiar candidaturas, em manifesto desvio de finalidade, interferindo ou manipulando indevidamente na escolha do eleitor, também pode incorrer nas sanções da Lei das Inelegibilidades.
Nesse ponto, inclusive, o julgado é claro ao destacar que a imunidade parlamentar não pode servir como “escudo para a prática de ilícitos”.
Dessa forma, o abuso do poder político e o uso fraudulento e abusivo das redes sociais podem ensejar a declaração da inelegibilidade do candidato beneficiado com tais condutas e “de quantos hajam contribuído para a prática do ato” (artigo 22, XIV da Lei Complementar 64/90). O mesmo dispositivo prevê a declaração de inelegibilidade por 8 anos subsequentes à eleição em que se verificou, além de determinar a cassação do registro ou diploma do candidato diretamente beneficiado, sem prejuízo das sanções na esfera penal.
Ou seja, ainda que a justiça eleitoral não tenha o poder de fazer as pessoas “desverem” os conteúdos de desinformação publicados nas redes sociais, há instrumentos constitucionais e legais que permitem a responsabilização, a posteriori, tanto dos candidatos beneficiados, quanto dos autores de tais práticas. O Supremo Tribunal Federal e Tribunal Superior Eleitoral já firmaram seus precedentes neste sentido.
Resta saber se conteúdos caluniosos, fantasiosos e até mesmo repugnantes, sem qualquer fundamento de veracidade, visualizados por milhões de pessoas, mas que não se relacionem propriamente à credibilidade das urnas eletrônicas, terão o mesmo tratamento pelas instituições do Poder Judiciário que os precedentes anteriores.
Além disso, há também o fator tempo.
O ex-deputado Franceschini, eleito em 2018, de forma correta, teve direito à ampla defesa e contraditório. A decisão final de seu processo somente veio a ser tomada em 2021, ou seja, três anos após sua eleição.
Enquanto não se desenvolvem vacinas institucionais eficazes, a saúde da democracia permanece exposta aos riscos de contaminação pelos vírus da desinformação e das “fake news” e às intempéries do abuso do poder político.
Para além das respostas institucionais, seria igualmente essencial que, tal como indagou o filósofo Michel Foucault em um de seus últimos cursos no Collège de France (“A coragem da verdade”), refletíssemos coletivamente sobre como os sujeitos representam a si mesmos e como são reconhecidos pelos outros como dizendo a verdade. O fato dessa enxurrada de mentiras render tantos votos a ponto de ameaçar seriamente a legitimidade do pleito eleitoral deveria ser um ponto de reflexão fundamental e obrigatório numa sociedade que se pretende democrática.
Que Brasil é esse, em que mentiras das mais grotescas podem decidir uma eleição? Essa é a questão que nos convoca e nos desafia, enquanto sociedade “civilizada”.
Cláudia Maria Dadico é Doutora em Ciências Criminais pela PUC-RS, juíza federal, integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
A coluna ‘Tribuna dos Juízes Democratas’, dos juízes e juízas da AJD, é associada às colunas ‘Avesso do Direito’ do jornal Brasil de Fato e ‘Clausula Pétrea’ do site Justificando. Publicado inicialmente no Brasil de Fato.
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