Por Ricardo Cravo Albin –
“No tribunal da minha consciência / O teu crime não tem apelação / Debalde tu alegas inocência / Mas não trás minha absolvição” (Noel Rosa – Orestes Barbosa – 1933).
Esta rara letra, vazada em estimulante anteparo de linguagem jurídica, foi criada por dois poetas da Era de Ouro da música carioca, e respalda o Tribunal dos Juízos (não juízes) que cada um de nós tem na consciência ao se deparar com realidades controvertidas. Como as do Brasil de hoje. Assim se encontravam ambos os poetas em 1933 quando Getúlio já esboçava o golpe de Estado de 1937, com a Constituição polaca de Francisco Campos.
Até pelo título, este artigo qualifica e aplaude neste imaginário Tribunal da Consciência o discurso de posse de Luiz Fux no Supremo Tribunal que representou um alento e uma guinada de rumos do Presidente anterior Dias Tofolli, ao reafirmar a convicção de independência e de altivez do STF frente ao poder executivo, ao qual seu antecessor chegou à perigosa fronteira do limite , fato que causou um quase estopor de críticas em todo o país, inclusive na própria Corte, embora veladamente. Sim, o carioca Fux, que reconhece e ama o espírito desta cidade, produziu não apenas mais um discurso, senão um habeas corpus “noeliano” para abrigar grandes teses a aplacarem sustos e temores produzidos pelo judiciário latu sensu, incluindo a Procuradoria Geral da República. Que, ante aos olhares estupefatos da nação, comandada apenas por um procurador, não da república, mas do presidente que o nomeou, não das forças tarefas que iniciaram o combate sistemático à roubalheira persistente aos cofres da nação e aos políticos que ostentam fichas sujas, na verdade sujíssimas, de que a nação é sobejamente conhecedora. A perseguição de Aras à mais que heroica Lava Jato e seus procuradores já saltou às ruas como piada grotesca de amargo gosto.
Ainda sobre o alento que Fux representa, ele insistiu ante o Presidente Bolsonaro sobre valores decisivos como a exaltação da liberdade de expressão, a diversidade e todos os níveis da cidadania e a democracia. Alçando aos primeiros lugares em seu coração a proteção dos direitos humanos e do meio ambiente. Isso ao mesmo tempo em que a Amazônia e o Pantanal ardem e horrorizam o mundo.
Até pareceu, como me declararam por telefone jornalistas amigos de Nova York, que ao acrescentar ao tribunal de suas consciências os valores da aceitação das diferenças. Fux asseverou que o STF trabalharia pelo resgaste das identidades historicamente vulneráveis, reconhecendo os direitos dos povos indígenas e dos afrodescendentes, afirmando-se ainda pela legitimidade de minorias étnicas, uniões estáveis homo afetivas e paternidades sócio afetivas, rechaçando preconceitos sobre a trans e a homofobia, validando até a Lei Maria da Penha. Por isso os jornalistas concluíram bem humorados que Fux e Bolsonaro seriam de dois planetas antagônicos.
De Nova York, meus amigos, também analistas políticos que escrevem para cadeia de veículos, sacaram a seguinte premonição – “parece inacreditável que de repente surja um novo líder político em seu país. Agora, Bolsonaro não há de temer Sérgio Moro. Luiz Fux, sim, pode ser o próximo presidente do país”. E gargalharam ao finalizar – “Seu país de fato surpreende pela originalidade. Um judeu apregoando as grandes teses do Papa Francisco”.
Trago ainda ao Tribunal da Consciência, neste Habeas Corpus poético em honra a Luiz Fux, dois assuntos que incomodam e minam o governo. O primeiro é a má gestão na flexibilização para a abertura das escolas e colégios. Esta semana parece que a confusão do abre-fecha escolas chegou a um limite inaceitável. Onde anda o novo Ministro da Educação que não interfere com força moral e persistência junto aos sindicatos das escolas privadas bem como aos Secretários de Educação? Como venho clamando há meses neste espaço, todo cuidado ainda será pouco, pela transmissão assintomática de adolescentes e até crianças. Acrescida pela temerária desobediência civil de adultos e jovens ao lotarem bares, praias, igrejas e academias, sem qualquer observação aos protocolos estabelecidos pelos cientistas.
Do nosso Rio, nem cabe falar, com um prefeito que é vitimizado em qualquer setor, pensando tão somente, eu acredito, em não ser preso pelas artimanhas que aprontou, em especial a partir dos famigerados Guardiões do Crivella?
Outro Tribunal de nossa Consciência indica a Bolsonaro que desista de recomendar em público ao Congresso que derrube seu próprio veto a benefícios injustificáveis e caríssimos às igrejas. Somos um país laico, onde o Estado é separado de religiões. Além de ás vésperas de uma inflação, empobrecido pela pandemia.
Caro Presidente, li recentemente substancial ensaio sobre a “Pesada descrença do eleitorado quando líderes da nação se desmentem de seus próprios atos”. O pecado mortal para os eleitores ocorre quando passam a desconfiar dos candidatos que desdizem o que disseram. O colunista Merval Pereira escreveu há dias sobre o livro “Por que os líderes mentem” de Mearsheimer e do efeito de mentiras como instrumento de política internacional. No caso de Bolsonaro se desdizer, indicando aos parlamentares que votem contra seu necessário veto, o pecado fica a nu, porque todos sabem das ligações do Presidente com as igrejas evangélicas. Acresce ainda a possível violação da Lei de Responsabilidade Fiscal, porta aberta para um impeachment presidencial.
O Habeas Corpus de Noel e Orestes termina com sugestão dirigida a dirigentes teimosos, originalmente ao bem humorado estadista Vargas, que teria chamado ao Catete os poetas para entoar, só para ele, Presidente, os seguintes versos:
“Tu tens agravantes da surpresa / E também as da premeditação / Mas na minh‘alma tu não ficas preso / Porque teu caso é caso de expulsão”.
RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin, Colunista e Membro do Conselho Editorial do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
MAZOLA
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