Por Lincoln Penna

Deixei para escrever meus comentários sobre o crime perpetrado numa das lojas do Carrefour, em Porto Alegre, que tirou a vida de João Alberto, o Nego Beto, de forma torpe, cruel, e com a cumplicidade de muitos a assistirem passivos ao assassinato, para retomar o que me parece importante dizer. Refiro-me ao pano de fundo que vitimou o trabalhador gaúcho, assim como outros tantos que sucumbem em nosso país.

Mais do que um registro, cabe a repulsa indignada de quem até hoje luta contra a permanência da escravocracia, termo que designa o poder de mando dos escravocratas, que como dizia Joaquim Nabuco a respeito da Abolição que não se completou, não teve os seus poderes suprimidos e seus atos e autores condenados.

O paralelo com a transição da ditadura empresarial e militar de 1964 para a democracia chancelada pela Constituição de 1988 é inevitável, como inevitável é a comparação dos atuais dirigentes governamentais e de demais entidades públicas e privadas com os senhores da Casa Grande, absolutamente isentos de punibilidade pelos seus atos de lesa humanidade. E estes não se limitam aos que os praticam, mas os que os defendem.

Enquanto não nos empenharmos na luta contra a escravocracia, cuja manifestação mais recorrente é o racismo, não iremos concluir a tarefa histórica do combate à escravidão, posto que esta não se limita ao sistema de trabalho. Ela se estende às práticas sociais, políticas e culturais de modo a torna-la presente entre nós. É pouco explicar o racismo como um dado estrutural. Todos o sabem que ele deriva de um pesado legado para a maioria do povo brasileiro, negro e submetido a permanentes discriminações cotidianas e se acobertou no seio das classes dominantes.

Para operar essa luta inconclusa, não bastam as frentes negras do passado recente, os movimentos a aglutinar as populações de origem afro-brasileiras com vistas à resistência em relação aos atos de racismo explícito ou não.

Muito embora valorosos, me parece pouco se não engajarmos o conjunto da sociedade civil. Penso, particularmente, nos partidos políticos voltados para pautas libertadoras e populares, os sindicatos e demais entidades representativas comprometidos com tais valores e demais entidades. Não se trata de uma reivindicação pontual, mas a defesa de um compromisso histórico tardio, contudo mais do que nunca necessário diante de uma estrutura de poder que afronta o bom senso e os valores humanitários, que hoje estão em jogo.

A escravidão como uma relação social é baseada na exploração do trabalho escravo legalmente acabou, não obstante encontrar-se ainda em vigor em alguns grotões do país. Todavia, a escravocracia permanece travestida de traços muito salientes em todo o território nacional e com o beneplácito de governantes de ocasião. Logo, a luta envolve todos os que resistem à opressão, na qual o racismo é uma de suas consequências. Tal como na Abolição, não é suficiente abolir essa conduta por parte de brasileiros que a cultivam. É preciso mais do que isso, do contrário o racismo pode ser considerado um comportamento condenável, porém a escravocracia permanecer intocável, como intocável tem permanecida as estruturas arcaicas a conviver com a modernidade a exigir sua superação.


LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional; Colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.