Por Sebastião Nery

O Partido Comunista e a União da Juventude Comunista, ilegais, eram drasticamente reprimidos pela polícia. Para atuarem politicamente, lançavam mão de atividades mais amplas ou disfarçadas. Naquele dia, numa Conferencia de Defesa da Juventude, discutíamos o Brasil e o mundo e instalávamos em Minas o “Movimento Mundial da Paz”.

A guerra da Coreia dividia a opinião publica e estávamos indignados com a Coreia do Sul, capitalista e dependente dos Estados Unidos, que havia criminosamente invadido a Coreia do Norte, socialista e aliada da União Soviética.

Muitos anos depois, em Roma, numa entrevista coletiva, perguntei a verdade a Gorbatchev e dele ouvi, perplexo, que a Coreia do Norte é que tinha invadido a Coreia do Sul e não como dizíamos na época.

Fui preso merecidamente. Errei de Coreia.

Quando a polícia chegou à inauguração do “Movimento Mundial da Paz” em Minas, estávamos lá jovens estudantes e velhos líderes. Armando Ziller, venerando dirigente dos bancários e ex-deputado comunista. Sua bela filha Helia Ziller, estudante. Luis Bicalho nosso professor na Faculdade de Filosofia. Aluísio Ordones meu colega de Faculdade e vários outros.

Todos presos, socados em rádio patrulhas. Lembro-me bem da calma da Hélia que, empurrada aos tombos para dentro da radio patrulha, derrubada, levantou-se, sentou-se, abriu uma bolsa, tirou um pente e passou nos cabelos, alourados, lindos.

Depois de alguns tabefes, percebi que o magérrimo coronel Olímpio, da reserva do Exército, havia desaparecido. Tinha sumido na hora. Dias depois, já solto, encontrei-o em outra reunião:

– O senhor é muito rápido. Foi o único que conseguiu fugir.

– Meu filho, não fugi. Um oficial do Exército brasileiro não foge. Bate em retirada.

Saí da cadeia, fui ver o novo amor que nascera a meu lado, na sala de aula, na Faculdade, como um acendedor de sonhos, iluminando as manhãs. Era bela, a mais bela de todas, mas muito mais do que isso. Uma luz. Falava como quem acendia uma lâmpada. Sorriso lua, rosto sol. Nada mais havia se ela estava.

Naquela manhã, não foi à Faculdade. Cheguei à casa modesta , no bairro distante. Ela estava tensa no jardim:

– Que bom que você veio aqui. Não queria conversar lá na Escola. Passei todos esses dias imaginando como lhe diria. Agora sei. Não tenho forças para a sua generosidade. E não vou pedir que mude. Sei que vai ser sempre assim e sempre mais. Na hora em que for preciso alguém para sair na frente, você irá. Tem sido assim desde o principio do curso, quando começaram as lutas no Diretório e na Faculdade. Agora já não é só na Faculdade. É na rua. É na luta política. Acho lindo, gosto mais ainda de você por ser assim, mas sem mim. Sem eu estar a seu lado. Por favor, compreenda. Não tenho coragem para sua generosidade.

Era um segundo abismo que se abria embaixo de mim. E nada podia fazer. Outras tardes nos imaginamos na Bahia, o mar batendo naquela entrada de pedras tortas, naquele passeio de cimento gasto, naquele jardim com uma roseira seca. Agora só restava um adeus doído.

Subi a pequena ladeira da rua com a alma dilacerada. Entrei em um barzinho, pedi uma batida de limão, um papel, sentei e escrevi. Não era um poema. Era o naufrágio do amor.