Por João Marcos Buch –

Rafael Inácio estava tão nervoso, mas tão nervoso, que não conseguia falar e só chorava. Ele fora escoltado para a sala de audiências da unidade prisional, onde, como de costume, eu realizava os atos. Era o primeiro caso da tarde e, assim que apontei o local aonde o jovem devia se sentar, percebi que ali teria que agir com mais atenção.

Pedi a Rafael que inspirasse e expirasse e lhe ofereci um copo d’água. Lentamente ele foi se acalmando e com a voz trêmula começou a explicar os motivos pelos quais violara área de cobertura da tornozeleira eletrônica.

Rafael tinha sido condenado por tráfico de drogas e, após cumprir parte da pena no regime fechado, passou ao semiaberto, conquistando o direito do monitoramento eletrônico.

Nesse regime, chamado de “harmonizado”, o apenado permanece em casa, podendo sair para o trabalho e para o estudo, bem como para afazeres relacionados ao cotidiano. Uma vez na rua, os estigmas advindos do equipamento acoplado no tornozelo, que remonta à argola de ferro usada nos negros escravizados, logo fazem com que o apenado se dê conta de que ele saiu da prisão, mas a prisão não saiu dele.

No caso de Rafael, sequer deu tempo do rapaz sentir o preconceito. Sendo jovem e gozando da saúde de um jovem, embora vulnerabilizado, pois negro e com histórico de carências e descasos desde criança, juntou dinheiro como motoboy e aproveitou uns finais de semana para ir para a praia com amigos. E não podia! Foi irresponsável. Daí a revogação do monitoramento e o retorno à prisão, com o detalhe de que não houve recaptura, pois assim que soube da ordem de recolhimento, Rafael entregou-se voluntariamente na unidade prisional.

Durante a audiência, diante daquele jovem inconsequente e nervoso, que só sabia pedir perdão e que ainda pouca consciência tinha das dificuldades para superar os preconceitos, senti graça. Foi uma graça advinda de compaixão, do entendimento. A dor de Rafael me atingira.

Ao final do expediente, noite adentro, refleti sobre os sentimentos que me acercam durante os atos judiciais que realizo, como foi com Rafael. Em geral, aprendemos na faculdade, pelo positivismo, que a lei é o império e que fora dela não há racionalidade, portanto, não há justiça. Porém, após tantos fenômenos que, se não insuflados por essa ideia, não foram impedidos por ela (vide o holocausto), o direito evoluiu e interpretações mais humanistas e principiológicas alcançaram o devido espaço.

A própria literatura nos dá vários exemplos sobre o que pode acontecer caso a lei e ordem sobreponham-se implacavelmente às relações humanas e aos sentidos. Tanto Huxley (Admirável Mundo Novo) como Orwell (1984) são mestres nisso. E Tostói, entre muitos outros, também! Na sua obra, “A Morte de Ivan Ilitch”, o escritor russo narra magistralmente a história de um juiz que, ao descobrir ser portador de uma grave doença, percebe quão escassos foram os momentos de sua existência com algum significado; e como, ao longo do exercício de suas funções, supôs que o certo era separar sua vida profissional de sua natureza humana, julgando com os rigores inquebrantáveis da lei.

É certo que a racionalidade precisa fundar o trabalho do juiz, afinal, ninguém quer ser julgado por alguém regido exclusivamente pela emoção. Aliás, o ideal é que todos imaginem, de antemão, diante da linearidade profissional, qual será o veredito do juiz. Entretanto, a técnica nunca ficará totalmente separada dos sentidos. Tentar chegar a essa separação concreta leva fatalmente à ausência existencial de maior significado para a vida. Sem os sentidos, o julgador sequer perto passará das realidades concretas do indivíduo a ser julgado, com suas questões geográficas, sociais, raciais e racistas e, em sua maioria, de extrema vulnerabilização.

Por isso tudo, como ser humano, eu, juiz, devo sim verificar se o apenado está doente, se tem alguma dor, se está com frio ou com fome; e devo oferecer água àquele que está nervoso e que por isso não consegue se exprimir em uma audiência.

Uma semana mais tarde, Rafael foi apresentado no Fórum, para ser solto. Entendi que uma advertência era o suficiente no caso. Procedimentos e termos assinados, antes de o jovem ser dispensado, fui até a sala para me despedir.

— Siga sempre as orientações da justiça, Rafael, que tudo dará certo — disse-lhe, resoluto.

— Doutor Buch, eu sou um rapaz bom, o senhor vai ver — respondeu Rafael.

— Sei disso, Rafael, eu sinto e sei.

O jovem, mesmo no frio do inverno, estava apenas de camiseta e bermuda. O assessor achou umas roupas no setor social, que se ajustaram bem.

E lá foi Rafael Inácio, aquecido e, desta vez, calmo e sorridente.

JOÃO MARCOS BUSH é juiz de direito da vara de execuções penais da Comarca de Joinville (SC) e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

A coluna ‘Tribuna dos Juízes Democratas’, dos juízes e juízas da AJD, é associada às colunas ‘Avesso do Direito’ do jornal Brasil de Fato e ‘Clausula Pétrea’ do site Justificando. Publicado inicialmente no Le Monde Diplomatique Brasil.

Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


PATROCÍNIO


Tribuna recomenda!