Por Lincoln Penna

Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História resistiu até o esgotamento. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, no entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.(Euclides da Cunha, Os Sertões).

Estamos longe desse fato ocorrido ainda na primeira década da República, exatamente em 5 de outubro de 1897. O registro de Euclides da Cunha é o objeto dessas linhas, não tanto pela excelência de seu depoimento jornalístico e de valor literário, mas pela demonstração de sensibilidade de alguém capaz de mudar a opinião até então formada em relação aos acontecimentos a envolver aquela comunidade de sertanejos do interior da Bahia.

Ao conviver com o povo daquele recanto do interior, Euclides não encontrou monarquistas fanatizados ao reportar suas matérias para o jornal. Apenas homens dispostos a defenderem seu quinhão construído com o esforço de todos. Lutavam sim, contra a opressão. Quando a realidade se impõe e as pessoas se libertam de estigmas ou da reprodução da intolerância que assimilam acriticamente, geralmente vindas de cima, dos poderosos visando à manutenção de seus privilégios, elas percebem as coisas com outros olhares. Foi assim com Euclides.

Além de contemplar essa mudança de opinião no curso daqueles acontecimentos a agitar os primeiros anos do regime republicano, é um convite para um pequeno exercício de História Comparada, tomando-se como referência o que se passa no Brasil de hoje. Por que? Não temos Canudos daquele tempo, mas estamos diante de uma crise a mais de nossa República, cujo desfecho corre o risco de ser tão dramático quanto o que se deu naquele distante ano.

Oliveira Vianna, em O Ocaso do Império, sinaliza o momento em que o regime monárquico já em seu Segundo Reinado conheceu o seu lento desfecho. O autor alinhava os fatores que determinariam a queda do império e chama atenção dentre elas para as “fermentações morais que determinaram as chamadas questões militares”.

E essas fermentações morais de que alude Oliveira Vianna tem a ver com a progressiva dissintonia dos militares com a monarquia, que para se fazer popular escalou contra a vontade dos homens de farda o príncipe consorte Conde d`Eu já ao término da Guerra do Paraguai.

Prisioneiros do arraial de Canudos após o confronto com o Exército retratado em “Os sertões”; a foto fez parte da exposição “Euclides da Cunha. Os sertões — testemunho e apocalipse”, na Biblioteca Nacional (Foto: Divulgação)

Naquele instante estava configurada a tal fermentação moral, em razão do oportunismo de um membro da família dinástica em querer tirar proveito de uma derrota das forças inimigas na guerra, bem distante de qualquer compromisso patriótico. Os militares reagiram, até porque não se dispunham a ser uma guarda pretoriana do regime ou uma gendarmeria a serviço do império.

Pois, bem, voltemos à memória de Canudos. Manifestação de autonomia e defesa de território, combinado à reação contra a política de impostos praticada pelos primeiros governos republicanos. Essa comunidade aonde imperava a pobreza conhecera um andarilho, construtor de casas, Antônio Conselheiro, que através de suas prédicas ganhara o seu epíteto, a alimentar esperanças e com isso a unir os povoados que passaram a segui-lo como líder daquela gente.

Os fake news da época atravessaram a imprensa, contaminaram as instituições republicanas, e provocaram no Exército a reação diante de um suposto movimento restaurador que se encontrava em plena efervescência a manipular as populações carentes da região igualmente carente. Como instituição garantidora da vigência do regime republicano, os militares foram à luta e depois de três investidas contra os briosos defensores da Aldeia de Belo Monte, concebida e construída pelo povo local, aniquilaram sua gente e com ela as esperanças de um futuro que não veio.

Vitória de Pirro, sem dúvida. Adveio a matança indiscriminada, que deixaram feridas e uma queda repentina do prestígio junto aos que tinham idolatrados os soldados quando estes se recusavam a se juntar aos representantes da Casa Grande. Alto custo que foi duramente amargado pelos cidadãos fardados. A história registra esses fatos, e ao registrá-los sugere que deva haver uma advertência, porque como se sabe os fatos que se apresentam como tragédias, como Canudos, não se repetem senão como farsas, que demoram a ser superadas.

Cabe aos comandos militares não se deixarem iludir por eventuais salvadores do passado. Lembre-se de Canudos.


LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.