Por Kakay

“Sinto esse frio coração em mim. Admirado de ser um coração. Tão frio está” (Fernando Pessoa)

Muito triste viver no Brasil. A tristeza é tal que chega a ser meio anestesiante dada a cachoeira de absurdos diários. Depois de dias de incertezas e tensão, a notícia terrível foi confirmada: o jornalista inglês Dom Phillips e o indigenista Bruno Pereira foram assassinados barbaramente. Segundo a confissão dos executores, eles foram torturados, esquartejados, queimados e enterrados para esconder os corpos.

Parece um roteiro de filme de terror. Por que tamanha crueldade? E a pergunta que começa a ecoar pelos rios, pelas árvores, pelas aldeias indígenas e pela Selva Amazônica: quem mandou matá-los? Provavelmente não teremos resposta, como ainda hoje não temos a definição de quem mandou matar Marielle. Porém, de certa maneira, o mundo todo sabe. Basta ver a reação sádica, indiferente e jocosa do presidente Bolsonaro ao dizer que “este inglês era malvisto” e que os mortos foram imprudentes ao fazerem o trabalho deles. Inacreditável a desfaçatez! O desprezo pelas famílias, pelos amigos, pelo povo inglês e pelos humanistas do mundo.

No caso, quase certamente os que não gostavam do Dom e do Bruno são aqueles que se locupletaram da política entreguista do governo. Os que queriam impedir que viessem à tona as verdades levantadas pelo bom jornalismo. Assim como não era bem-vinda a política indigenista levada a efeito pelo Bruno, profundo conhecedor do tema. Por isso as mortes; também por isso a atitude cínica do presidente Bolsonaro.

Quem apoia os que querem acabar com a floresta, sejam garimpeiros, pescadores ilegais, narcotraficantes, madeireiros ou milicianos, são cúmplices desses assassinatos. Está se consolidando a orientação do ex-ministro do Meio Ambiente de aproveitar a desatenção da imprensa, à época naturalmente dedicada a cobrir a pandemia, e “passar a boiada”. Dentre as várias propostas do ex-ministro, estava a de flexibilizar a legislação para facilitar a entrega do território brasileiro. Sendo assim, é importante averiguar os motivos da demissão do indigenista Bruno Pereira da Funai na época em que Sergio Moro era ministro da Justiça.

Esse é um caso que está mobilizando a imprensa internacional. É certo que a morte no Brasil foi banalizada, especialmente a dos negros, dos pobres e dos invisíveis, que acontece diariamente. A recente chacina de 25 jovens na comunidade do Complexo da Penha, no Rio de Janeiro, não ocupou por muito tempo qualquer espaço nobre na imprensa. Mas agora, entre os assassinados, está um jornalista inglês de um grande jornal britânico. E há um ataque frontal do presidente da República aos mortos. Certamente esse episódio será mais um a mostrar ao mundo a pequenez do governo fascista que nos envergonha diante da comunidade internacional.

Seria bom ler o poeta Li Po, na tradução de Cecília Meireles:

“Os corvos bicam as entranhas dos mortos, depois voam e pousam-nas nos ramos das árvores secas. Os soldados fogem, enlameados, por entre as ervas. O general em vão se esforça: nada consegue. Sabei que as armas são uma coisa perversa: o sábio não recorre a elas senão a contragosto.”

Mas, entre uma nota e outra, a vida apresenta seus vários tons musicais. E um assunto importante, porém muito menor, também merece a nossa atenção, mesmo nesse momento de tanta dor. No Brasil de hoje, as desgraças se sucedem de tal maneira que não podemos nos ater a apenas uma tragédia. E, ao falar do Moro, penso ser necessário fazer também outra reflexão.

Bolsonaro e o ex-juiz Sergio Moro durante a Solenidade de Lançamento do Projeto em Frente Brasil, em agosto de 2019. (Arquivo Google)

Quando comecei a advogar na Lava Jato, desde logo percebi o jogo político do tal juiz e da força-tarefa que ele coordenava. Uma vergonha, pensei eu. Mas notei que eu estava quase sozinho. Existia um grande esquema midiático, financeiro e político para fazer desse bando os heróis nacionais. Projeto sério de poder. Desses que derrubam e criam governos.

Saí Brasil afora apontando os desmandos e os abusos. Entre as várias questões abordadas, uma me intrigava: os donos da Lava Jato optaram por estuprar o instituto da delação premiada. Usavam acintosamente a prisão preventiva para conseguir as delações, que viraram uma moeda de troca –moeda mesmo, com valor financeiro.

Quantas vezes ouvi de delegados sérios e de procuradores indignados que o meu nome era moeda de troca nas delações: “Entregue aquele advogado Kakay que nós resolvemos sua vida.”

Deixei a advocacia de Alberto Youssef no começo das investigações quando, logo após um HC impetrado por mim no STJ com o objetivo de trancar a Operação Lava Jato, fui informado que ou o cliente desistia do processo de liberdade ou não ofereceriam o acordo a ele. Canalhas. Mil vezes canalhas. Saí do caso.

Mas segui tentando mostrar ao país a farsa dantesca da operação, que foi planejada para ganhar dinheiro e poder. E uma das bases para resgatar a soberania do Judiciário, após a condenação de Moro e de seu bando por corrupção ao sistema de Justiça, é desnudar os inúmeros abusos e responsabilizar criminalmente os que usurparam o Judiciário e o Ministério Público.

Agora, ao que parece, a tampa do esgoto começa a ser removida. Já fizemos sérios estragos na credibilidade desses fajutos arautos da moralidade, mas é necessário ir além. É preciso desnudar os hipócritas. O filme “Amigo Secreto”, da grande e premiadíssima cineasta Maria Augusta Ramos, demonstra que um delator da Odebrecht foi pressionado para comprometer o ex-presidente Lula. E ainda aponta a proteção do bando de Curitiba a outros políticos. Gravíssimo!

Parem as máquinas, apaguem as luzes e rebobinem tudo. Vamos ler Sophia de Mello Breyner no poema “Solidão”:

“A noite abre os seus ângulos de lua E em todas as paredes eu te procuro. A noite ergue as suas esquinas azuis E em todas as esquinas eu te procuro. A noite abre as suas praças solitárias E em todas as solidões eu te procuro. Ao longo do rio a noite acende as suas luzes roxas, verdes, azuis. Eu te procuro.”

Aquilo que todos nós sabíamos, inclusive o Judiciário e a imprensa, vai ser exposto ao mundo inteiro: houve um golpe contra o sistema de Justiça e contra a democracia patrocinado pela República de Curitiba. Instrumentalizaram as delações. Covardes! Foram os principais responsáveis pela eleição desse fascista que está governando o Brasil. Ou seja, a instabilidade institucional, o risco de ruptura, os 33 milhões de brasileiros passando fome, os 156 milhões de brasileiros em insegurança alimentar, os 12 milhões de desempregados e mais um sem-número de mazelas, têm como uma das origens a Operação Lava Jato –bandida e criminosa. Nossa expectativa é que agora comecem a surgir as delações das delações. Vamos entender os intestinos da podridão que foi a Lava Jato.

Mensagens demonstraram intimidade entre Sergio Moro e procuradores da “lava jato”. (Arquivo Google)

Vamos ouvir todos que quiserem falar; os que foram coagidos, humilhados e subjugados. A advocacia deles será patrocinada por uma causa nacional. Vamos ajudar os que querem dizer a verdade. É hora de passar o Brasil a limpo e mostrar quem são os bandidos que se vestiam de heróis. Vamos desnudá-los em praça pública.

Talvez eles sintam um pouco do que fizeram com muitas famílias brasileiras quando determinavam a humilhação em tempo real na mídia nacional. Não patrocinavam uma busca e apreensão ou uma prisão; iam muito além. Mandavam homens encapuzados e fortemente armados, quebravam portas, apontavam metralhadoras para crianças, tudo sob os holofotes da grande e imprensa. Cruéis, sádicos, hipócritas e bandidos.

Claro que eles terão o pleno direito de defesa e, óbvio, o respeito às garantias constitucionais. Mas vamos conhecer a verdade. Fiando-nos sempre em Miguel Torga:

“Guarda a tua desgraça, oh desgraçado. Viva já sepultado, noite e dia. Sofra sem dizer nada. Uma boa agonia deve ser lenta, lúgubre e calada”.

ANTÔNIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO, o Kakay, tem 61 anos. Nasceu em Patos de Minas (MG) e cursou direito na UnB, em Brasília. É advogado criminal e já defendeu 4 ex-presidentes da República, 80 governadores, dezenas de congressistas e ministros de Estado. Além de grandes empreiteiras e banqueiros. Publicado inicialmente no Poder360.


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