Por Maria Prestes

Tive que ficar mais de oito anos totalmente escondida, com meu marido e filhos, por conta de um terrível vírus que assolava o Brasil. Isso aconteceu entre os anos de 1951 e 1958. Não podíamos frequentar teatro, cinema, bibliotecas, parques, museus ou assistir qualquer espetáculo de música. No máximo podíamos, sempre com outra identidade, fazer compras de alimentos e medicamentos. Nossa vida era ficar trancados em casa. Tínhamos uma horta onde plantávamos e colhíamos couve, tomate, alface, salsa e cebolinha. De árvores frutíferas lembro da mangueira, da bananeira e do abacateiro. A nossa diversão, como não tínhamos a televisão, era ouvir músicas e o noticiário pelo rádio e, claro, a leitura. Também, alguns jogos, arte de cozinhar e de cuidar do jardim com roseiras e madressilvas.

Com a distância dos anos, percebo que foi importante, para vencer esse período de isolamento, a disciplina. A mesma que meu marido teve que forjar quando ficou preso, numa cela solitária, durante nove anos, entre 1936 e 1945. Lembro como ele dizia que na prisão estabeleceu horários rígidos para todas as suas atividades: 5h30 chimarrão, ginástica e arrumação da cela; 7h30 caminhada num pequeno pátio e em seguida leitura de jornais; 9h30 segunda caminhada e banho; 10h30 almoço; 11h caminhada; 12h leituras de livros, estudo de mapas e cartas; 16h jantar e nova caminhada; 17h estudo de matemática e filosofia; 20h chá; 20h30 (até 22h) estudos noturnos prolongados.

O vírus que assolava o país, que impedia a minha família ter uma vida normal, era o vírus do anticomunismo. Meu marido Luiz Carlos Prestes, o “Cavaleiro da Esperança”, naqueles anos era caçado em todo território nacional como um animal. Caso caísse nas mãos dos agentes da polícia secreta dos governos do General Eurico Gaspar Dutra (1945/1950), Getúlio Vargas (1950/1954), Café Filho (1954/1955) e Nereu Ramos (1955/1956), ele seria executado. O ambiente político começou a aliviar somente quando Juscelino Kubitschek se elegeu, em 1956, e promoveu uma distensão, permitiu que os comunistas pudessem circular livremente a partir de 1958. Como a única pessoa responsável pela segurança da vida de Prestes, no local de moradia, fico feliz quando olho para traz. Meu companheiro nunca correu o risco de ser preso.
Hoje lembro daqueles anos por duas razões. A primeira, porque um vírus, muito mais perigoso do aquele do anticomunismo, obriga toda a minha família a ficar isolada do mundo. Tenho sete filhos vivos, todos casados ou namorando; 26 netos e 25 bisnetos que residem nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Curitiba, Goiás, Baia Formosa, Anchieta, Buenos Aires e Moscou. Por tanto, tenho uma visão bem ampla da situação atual.

A segunda razão, é pela impaciência de muitos parentes e amigos, líderes políticos e sociais frente a pandemia da Covid-19. O risco de contaminação é grande e a ciência provou que temos que usar mascaras e, quando necessário, luvas para se proteger ao sair para comprar alimentos e medicamentos. Caso seja possível, melhor nem sair de casa! Desta maneira, diminuímos a quantidade de pessoas infectadas e reservamos os leitos hospitalares com respiradores para pacientes graves.

Temos que ter disciplina para vencer. A mesma que meu marido estabeleceu para atravessar os anos de sua injusta prisão, a mesma que estabeleci durante os anos de clandestinidade. Assim como o vírus do anticomunismo passou e meu marido pode viver seus últimos 11 anos de vida no Brasil sem ser perseguido, o coronavírus vai passar.


MARIA PRESTES é viúva de Luiz Carlos Prestes – militar e político comunista, uma das personalidades políticas mais influentes no Brasil durante o século XX.