Por Roberto Amaral –
Em matéria na Piauí que está nas bancas (“Vou intervir”), a jornalista Mônica Gugliano relata reunião realizada no dia 22 de maio deste ano no gabinete da presidência da República, presentes o capitão e três generais, o ministro-chefe da casa civil, Walter Braga Netto, o ministro-chefe da secretaria de governo, Luiz Eduardo Ramos, e o ministro-chefe de segurança institucional, Augusto Heleno. Descreve a repórter:
“Agitado, entre xingamentos e palavrões, o presidente saiu logo anunciando sua decisão: Vou intervir! – disse. Bolsonaro queria mandar tropas para o Supremo porque os magistrados, na sua opinião, estavam passando dos limites em suas decisões e achincalhando sua autoridade. Na sua cabeça, ao chegar no STF, os militares destituiriam os atuais onze ministros. Os substitutos, militares ou civis, seriam então nomeados por ele e ficariam no cargo ‘até que aquilo esteja em ordem’, segundo as palavras do presidente. No tumulto da reunião, não ficou claro como as tropas seriam empregadas, nem se, nos planos de Bolsonaro, os ministros destituídos do STF voltariam a seus cargos quando ‘aquilo’ estivesse ‘em ordem’”.
Apesar da defesa do general Luiz Eduardo Ramos, para quem o STF “já havia extrapolado”, a intervenção foi afastada, ou postergada. O general Heleno, por exemplo, ponderaria que “o momento não era oportuno”. Como se vê, uma pura análise de conveniência. O concílio de celerados serenou, após encomendar ao general da segurança institucional a emissão daquela nota que ameaça a todos com “consequências imprevisíveis”. Na sequência, o ministro da defesa, em entrevista a um semanário, aconselharia os poderes a não “esticar a corda”.
Entenda-se como tal o que se quiser. Em qualquer país ainda institucionalmente vivo, o simples relato dessa maquinação odiosa teria provocado, senão uma grave crise política e a apuração de responsabilidades, ao menos um profundo debate, pois ali se relata, em pormenores, a preparação de um golpe de Estado que teria como ponto de partida o fechamento do STF, a que jamais ousaram as muitas intervenções militares (a começar pela de 15 de novembro de 1889 e a concluir pela de 1964) e as revoluções de fancaria que juncam de acidentes institucionais a atribulada história desta república de poucos donos.
A ameaça, porém, passou em brancas nuvens em todas as instâncias dos diversos poderes e partidos. O presidente do STF (no que foi acompanhado pelos colegas de toga, normalmente boquirrotos sobre o que não lhes diz respeito) fez cara de paisagem. Para não ter de agir – sua obrigação de ofício –, preferiu ignorar a afronta e, mais uma vez, nessa sequência de crises que não encontram desenlace, o dito foi tido por não dito, porque covardemente não foi ouvido ou lido. O presidente do Senado decerto não teve tempo de ler a reportagem, porque mais cuida de sua reeleição inconstitucional, e o presidente da Câmara, mesmo abespinhado com o planalto, está mais preocupado em levar avante as reformas da “pauta Guedes”, seu compromisso de vida com o sistema financeiro, de que é procurador. Nada se leu da lavra do vigilante Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. E nada poderíamos esperar da Procuradoria Geral da República, reduzida a escritório de advocacia do presidente e sua famiglia. Mas o silêncio mais estarrecedor foi o da chamada grande imprensa: nenhum de seus editorialistas viu na maquinação golpista tema suficientemente sério para suas análises.
Dir-se-á que a denúncia passou assim em brancas nuvens porque não encerra qualquer sorte de novidade (daí não haver despertado cataclismos), posto que o golpismo está na ordem do dia desde que o capitão e sua retaguarda de generais tomaram o governo. Ora, é por isso mesmo, porque conhecemos a folha-corrida do ainda presidente, porque conhecemos as inclinações antidemocráticas do atual comando militar – ostensivas desde, pelo menos, o recado do general Villas Bôas ao STF, ainda em 2018 – que a denúncia estampada pela revista estava e está por exigir um mínimo de reação do chamado mundo político, um mínimo de reação do que ainda se chama de opinião pública em democracia exemplaríssima que se jacta de conviver com uma imprensa monopolizada ideologicamente. O deputado Ivan Valente (PSOL-SP), requereu informações sobre a dita reunião, e seus partícipes (lê-se na imprensa) responderam que discutiram receitas de bolos, e tudo se encerrará nesses termos, até que o avestruz que esconde a cabeça no buraco para não ver seu predador se dê conta da preeminência da realidade sobre a alienação. E nesses casos, quase sempre, os incautos são surpreendidos pela tragédia.
Como previsto, já somamos mais de cem mil mortos – nas inconfiáveis contas do governo – e mais de três milhões de infectados. Antes do final do ano contabilizaremos 150 mil mortos, vítimas da irresponsabilidade criminosa do capitão e seu governo. A irresponsabilidade tem o título de genocídio e a ele voluntariamente se associa o exército, mediante a inexplicável permanência de um general (intendente) da ativa no comando do ministério da saúde. A Amazônia arde em fogo, e o que sobra da floresta é devastado. A promessa do governo é legalizar a grilagem que promove as queimadas e o desmatamento, destruindo o que sobrevive ao garimpo irregular e à pecuária predatória. Dados do INPE, divulgados no último dia 7, atestam que o desmatamento da região cresceu, 34% de 2019 para cá! O general-vice, porém, culpa as lentes dos satélites do INPE. O major astronauta, a cuja mercê estão a ciência e a tecnologia do país, trata-se da Covid com vermífugo. O capitão faz comercial de uma droga inócua e põe em risco a saúde dos incautos.
O mercado de trabalho sofreu, do primeiro para o segundo trimestre deste ano, uma queda de cerca de 9 milhões de vagas, atingindo majoritariamente os trabalhadores que atuavam na informalidade (dados do IBGE divulgados no dia 6 último). Chega a 1 milhão a redução de empregos com carteira assinada. Diminuem as oportunidades de trabalho e aumenta o desemprego que fechou junho em 13,3%, contando apenas os que que ainda procuram vaga. Desse índice, por exemplo, estão fora cerca de 11 milhões de brasileiros que, desesperançados, optaram por abandonar a força de trabalho (Estadão, 7/8/2020). Outro é o exército dos “precarizados”, os brasileiros que vivem de “bicos” e biscates, ou com salários reduzidos.
E ainda não chegaram ao pico as curvas do genocídio e da desestruturação da economia, o austericídio a que se dedica o ministro da economia. Em meio a tudo isso, as forças armadas, em nome da pátria, reivindicam 2% do orçamento da União – mais ou menos o dobro do que se gasta com ciência, tecnologia e inovação – para “modernizar-se” comprando equipamentos de segunda linha dos EUA. Isto é, aumentando nossa dependência material e estratégica, e país cujas forças são dependentes de equipamentos e tecnologia estrangeira não tem política de defesa e não pode cogitar de soberania. No fundo, a proposta sequer é original, pois decorre da política de Trump que cobra de seus “aliados”, desde a comunidade europeia aos seus quintais, o aumento dos respectivos orçamentos de defesa, leia-se, aumento das compras de tecnologia de guerra, de armas e munições etc. Compras que terão de ser feitas, necessariamente, ao maior fabricante e fornecedor mundial de armas, munições e tecnologia de guerra, exatamente os EUA. Assim nossa pobreza, tão grande que não nos permite manter um programa de renda mínima universal e permanente, é chamada a contribuir com a portentosa indústria bélica do império e, ainda a seu serviço, provocar uma suicida corrida armamentista entre nossos vizinhos.
E o país – suas forças sociais — repousa em calma. A anomia da nação é uma das mais graves conquistas da direita brasileira, que percorre a estrada asfaltada pela campanha, de décadas, dos grandes meios de comunicação, dos aparelhos ideológicos de dominação (e no meio deles a emergência recente de seitas pentecostais reacionárias a serviço de comerciantes da fé, de que é exemplo paradigmático o “bispo” Edir Macedo), visando à desmoralização da política e dos políticos, o que, em síntese, implica a desqualificação do fazer político, sem o que não há a menor possibilidade de sobrevivência de uma democracia digna deste nome.
A desmoralização da democracia – passo preparatório das incursões da direita – medrou fácil em terreno adubado por um conservadorismo atávico que pervade a sociedade brasileira e a torna presa fácil de toda sorte de arrivismo totalitário, de que o discurso do bolsonarismo é apenas um sintoma, grave, mas que não encerra a tragédia toda, pois sua livre transmissão é favorecida pela ausência do embate ideológico a que algumas correntes da esquerda brasileira renunciaram ao depositar todas as fichas na disputa eleitoral rendendo à expectativa de bom êxito todas as concessões, inclusive a renúncia ao seu discurso, aos seus programas, à própria razão de ser. Indiferenciados, submergimos na mesma crise.
Está por travar-se o pleito municipal. Das esquerdas é justo esperar-se, pelo menos, um pacto político de denúncia radical do statu quo (o regime de classes agravado pelo neoliberalismo), e a apresentação, ainda que em linhas gerais, de um programa ou plataforma de governo alternativo ao pacto da casa-grande. As campanhas eleitorais precisam ser, sempre, o espaço privilegiado para a grande exposição de ideias, oportunidade inestimável para a politização e organização das massas. Esse desafio se coloca como prioritário para a esquerda socialista em qualquer conjuntura, mas torna-se irrecusável em momentos como o presente, de descenso das forças populares. Fora daí a ação política perde sentido.
ROBERTO AMARAL – Escritor, cientista político, ex-ministro de Ciência e Tecnologia, colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
MAZOLA
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