Por Lincoln Penna

A democracia é hoje não apenas o terreno no qual o adversário de classe é obrigado a retroceder, mas também o valor historicamente universal sobre o qual possa ser fundada uma original sociedade socialista. (Enrico Berlinguer, discurso por ocasião do 60º aniversário da Revolução de Outubro de 1917)

Há nove anos neste mês de setembro falecia Carlos Nelson Coutinho, que tornou conhecida a concepção abraçada por teóricos europeus, originária do Partido Comunista Italiano segundo a qual a democracia é um valor universal. Seu livro de 1984, cujo conteúdo foi antes publicado na revista da Civilização Brasileira, com este título, foi objeto de muitas polêmicas e até hoje é referência nos debates de grupos de estudos voltados para os caminhos alternativos a respeito da realidade brasileira, ou mais precisamente da revolução brasileira.

A veiculação trazida pelo filósofo brasileiro em relação a essa questão do significado da democracia circulou no instante em que por aqui se discutia o caráter tático ou estratégico que ela representaria. E esse debate atingiu o seu ponto crucial nos anos da ditadura, cujas avaliações dos erros da esquerda ganhariam forte polêmica. Época onde a questão era a das etapas da revolução na qual a democracia era o centro desses debates acalorados.

Contudo, a origem dessa polêmica, sobre a relação do socialismo com a democracia, faz parte do patrimônio do marxismo. O chamado Jovem Marx já o pontuava em suas análises. E em torno dele se discute até hoje a questão dos objetivos táticos e imediatos da democracia e o seu conteúdo estratégico. Ou mais simplesmente, se ela é um meio ou uma componente dos objetivos finais de um processo revolucionário de remoção de uma estrutura de ordem burguesa.

Debatia-se, então, se na sociedade conduzida pela burguesia, a democracia era própria de seu sistema de poder, e neste caso ela era como um elemento inerente da burguesia; e, para tanto teria de ser removida, pois essa democracia burguesa além de mascarar a exploração do trabalho, não garantia os bens que eram proporcionados aos que nela pertenciam. Para substituir essa falsa democracia se constituiria uma democracia mais qualificada e, essa sim, universal. Essa, todavia, passaria por uma etapa da ditadura do proletariado.

Por ser considerada burguesa, a democracia pouco valor representaria para um número grande de militantes de esquerda a reproduzir os esquemas interpretativos em voga. Sua evocação ou uso instrumental em situações nas quais se impunha uma aliança tática tornara-se usual nos tempos daqueles debates que precederam a transição da ditadura. E serviria de inspiração para os projetos revolucionários.

Prefiro considerar a democracia um valor essencial, uma vez que o termo universal sugere uma formatação comum a todos os variados universos da política, ao passo que a sua essencialidade adota a diversidade. E ao ressaltar essa condição da essencialidade estou sublinhando a conquista da política, esta sim, um valor universal, dada que sua prática é e deve ser própria a todos os universos, cada qual com suas peculiaridades.

Mas, os embates políticos e ideológicos só se tornam possíveis em ambientes democráticos, logo de liberdades.

A Democracia Ateniense foi um regime político criado e adotado em Atenas, no período da Grécia Antiga. Foi essencial para a organização política das cidades-estados grega, sendo o primeiro governo democrático da história. O termo “Democracia” é formado pelo radical grego “demo” (povo) e de “kratia” (poder), que significa “poder do povo”. (Fotomontagem/TIL)

É nesse sentido que a essencialidade se apresenta como o lugar reservado para os confrontos políticos. Suprimi-los em nome de qualquer argumento de maneira a sufocar a prática político é um desvio de lesa política. Ou seja, depõe contra algo que foi uma conquista da humanidade. Seja como individualidade, como classe, ou como categoria social, a cidadania não pode prescindir da arena política.

É razoável que cada interlocutor da arena política manifeste seus pontos de vista, desde que garanta a coexistência das falas contrárias, do contraditório. Este princípio, sim, é universal, pois estimula a rica diversidade de opiniões, e com isso a circulação de ideias sem que nenhuma se sobreponha sobre as demais. Erigir interdições em nome de um dado poder supostamente mais representativo do que qualquer outro, não é democrático, não importa se vocaliza interesses de classe.

Por fim, é conveniente o entendimento de que a democracia é sempre um processo em construção. Ela estar em permanentes reavaliações e sujeita a correções de rumo dependendo das correlações de forças sociais e políticas. Nesse sentido, deve estar aberta à incorporação de conquistas e novos experimentos, que garantam o mais completo bem-estar das pessoas. Mas, desde que seja para todas as pessoas.

Carlos Nelson Coutinho proporcionou um debate nas correntes democráticas e, especialmente nas esquerdas socialistas e comunistas, como poucos quadros teóricos. Rediscutir suas ideias e eventualmente delas discordar só enriquece sua contribuição para as ideias políticas de um País tão pobre nesta área.

Que o seu legado e a estima que soube despertar em seus camaradas, amigos e leitores contagiem as novas gerações que venham a tomar contato com sua obra de filósofo e militante político.

LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.


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