Por Ricardo Cravo Albin –
Caros leitores, muitos são os cronistas que impedem de vir à cena seus arroubos pessoais e admirações por amigos. E os prende no escaninho da memória, para não transportá-los, vivos e flamejantes, para seu dia a dia. Eu, logo adianto, não sou desses. Ao contrário, os meus queridos personagens de vida – e são muitos – latejam com insistência dentro do um vasto museu que me habita, nem sei bem em que gaveta de minha alma.
Agora mesmo fui assistir ao novo espetáculo teatral do Sérgio Fonta, velho amigo e meu atual sucessor na Presidência da Academia Carioca de Letras. No pequeno e histórico Teatro Candido Mendes de Ipanema, quatro ótimas atrizes revivem vida e textos de quatro escritoras brasileiras, que viveram em uma mesma geração, a dos anos 30 em diante do século XX na cidade do Rio. A autora da peça Rachel Gutierres escolheu Clarice Lispector, Hilda Hilst, Carmen Silva e Eneida de Moraes, incorporadas com brilho pelas atrizes Helga Nemetik, Stella Maria Rodrigues, Laura Proença e Izabella Bicalho, todas ótimas. Eneida, eu adotei como uma das melhores e mais chegadas amigas em seus últimos anos de vida. E isso ocorreria no exato momento em que lhe gravei o depoimento para a posteridade no então já celebre estúdio do Museu da Imagem e do Som.
O ritual do depoimento clássico do MIS começava com a pergunta inicial que eu havia institucionalizado desde seu início em 1966: nome completo, data e local de nascimento. Eneida com a costumeira liberdade de expressão de imediato logo disse a que vinha – “Eu me chamo Eneida de Villas Boas Costa de Moraes, nome de nobre. O que nunca fui, porque sou povo. Amo o povo e o defendo politicamente por décadas a fio. Eu nasci em Belém do Pará, em 23 de outubro de 1904, a cidade mais bem cheirosa do mundo”. Eneida foi jornalista, militante política, carnavalesca e pesquisadora. Além de mãe de dois filhos, Lea e Otávio Sérgio, ex-jogador de futebol, que manteve célebre romance com a cantora Elizeth Cardoso, amiga pessoal de sua mãe. De 1913 a 1918 Eneida esteve interna no famoso colégio de meninas Sion, onde desenvolveu habilidades na arte de escrever cartas, tanto as de amor, quanto as dirigidas à mãe Julia em Belém. Já em 1930 passou a morar no Rio e ingressou com força e energia tanto no meio literário quando na política, filiando-se ao então temido PCB. Por sugestão de sua amiga Eugenia Álvaro Moreira (figura de enorme prestígio no Rio), adotou o nome literário de militante política Eneida (sem sobrenome do pai e do marido). Intelectual orgânica, liderou greves e se envolveu nas revoluções de 1932 e 1935, quando residiu em São Paulo. Esta ativa atuação política lhe rendeu 11 prisões no Estado Novo, além de tortura e exílio. Na prisão, conheceu Olga Benário e Graciliano Ramos que a imortalizaria em Memórias do Cárcere. Em 1950, Eneida exilou-se em Paris. De lá escrevia para muitos jornais do Rio e São Paulo. Inclusive para o Diário de Notícias, onde criou a célebre coluna “Encontro Matinal” que se estendeu até seu falecimento em abril de 1971. Na década de 50, Eneida aproximou-se ainda mais do carnaval carioca e da Escola Acadêmicos do Salgueiro, uma paixão declarada aos quatro cantos.
Em 1965, o Salgueiro desfilou com o enredo baseado em seu mais celebrado livro “História do Carnaval Carioca”e foi campeã, com Eneida desfilando na ala dos pierrôs ao lado de personalidades da vida carioca. Antes ela ainda criaria o famosíssimo Baile dos Pierrôs, que fez história no Rio.
O Acadêmicos do Salgueiro desfilaria uma segunda vez em sua exclusiva homenagem no ano de 1973 com “Eneida, amor e fantasia” (que ficou em terceiro lugar no desfile daquele ano). Fernando Pamplona, Elizeth e eu próprio colaboramos intensamente com o desenvolvimento do enredo para Eneida, já morta há dois anos.
Eneida sempre me dizia que sua rotina matinal começava com dois telefonemas diários ao longo de décadas, um para Carlos Drummond de Andrade, o outro para o editor Carlos Ribeiro, segundo ela dois de seus mais fiéis amigos.
Logo que criei o Conselho de Música Popular do MIS, convidei Eneida para ser a secretária-geral. O que ela encarou com enorme responsabilidade, declarando com graça e charme na sua posse – “Você só pode estar bem protegido por seus orixás, para designar uma comunista fichada como eu”. Em cima eu respondi – “Eneida, ainda ontem eu recebi a visita de um coronel para saber quem era você e se você queria transformar o conselho em órgão comunista. Disse-lhe na bucha – Nada disso, a única coisa que Eneida deseja é que todos sejamos Salgueiro – Ah bom, sua secretária Eneida tem minha benção, como diretor do Salgueiro que sou agora”. E ela prontamente – “Convido o coronel para vir ao Museu falar do Salgueiro no próximo carnaval”.
Outro fato que me acode agorinha mesmo em minha intensa amizade com Eneida ocorrera quando saíamos do júri do Festival da Canção no Maracanãzinho depois da polêmica em que Sabiá (de Tom e Chico) ganharia de Caminhando Contra o Vento (de Vandré). O público vaiava intensamente o júri e protestava. Na saída do Maracanãzinho, eu conduzia Eneida pelo braço em direção ao meu Fusca no estacionamento, ao lado dos também jurados Ary Vasconcelos, Guerra Peixe e Jotaefegê. Sentamos os cinco no fusquinha e ao ligar o motor ouvimos um grito ameaçador – “Olha a cambada dos jurados que derrotaram o Vandré”.
Gritei para Eneida, enquanto acelerava – “Fecha a janela rápido!”. Nisso, apareceram três PMs e cercaram nosso carro, protegendo-nos da turba que já vinha em nossa direção. Eneida emitiu uma frase histórica – “Jamais pensei que pudesse vir a ser salva um dia pela PM, que tantas vezes me prendeu”.
Eneida morreu ao lado da amiga Elizeth no Hospital da Lagoa. Levei o corpo para ser velado no Salão superior do MIS. A noite toda desfilaram mais de duas centenas de pessoas, artistas, jornalistas e amigos. Às oito da manhã, o governador do Pará levou o corpo de Eneida em avião especial para ser sepultado como ela queria “embaixo de frondosa mangueira. E com caixão entupido de folhagens dos cheiros característicos de Belém do Pará”.
Eneida, coberta por próspera mangueira e com caixão perfumado pelos cheiros de sua Belém, certamente que descansaria em paz. Até hoje, 120 exatos de seu nascimento no Pará. Que evoco aqui emocionadamente, graças à peça “Palavras de Mulher”.
RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.
Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
PATROCÍNIO
Tribuna recomenda!
MAZOLA
Related posts
O Brasil e a Amazônia na ONU
Degradação moral: mentiras na CPI
Editorias
- Cidades
- Colunistas
- Correspondentes
- Cultura
- Destaques
- DIREITOS HUMANOS
- Economia
- Editorial
- ESPECIAL
- Esportes
- Franquias
- Gastronomia
- Geral
- Internacional
- Justiça
- LGBTQIA+
- Memória
- Opinião
- Política
- Prêmio
- Regulamentação de Jogos
- Sindical
- Tribuna da Nutrição
- TRIBUNA DA REVOLUÇÃO AGRÁRIA
- TRIBUNA DA SAÚDE
- TRIBUNA DAS COMUNIDADES
- TRIBUNA DO MEIO AMBIENTE
- TRIBUNA DO POVO
- TRIBUNA DOS ANIMAIS
- TRIBUNA DOS ESPORTES
- TRIBUNA DOS JUÍZES DEMOCRATAS
- Tribuna na TV
- Turismo