Por Siro Darlan

Sou um juiz comprometido com as causas sociais desde que fiz concurso para a magistratura em 1982. Passados 41 anos, não abri mão um milímetro desse compromisso. Contudo tem sido uma saga que exige muita persistência e sacrifícios pessoais. Vale lembrar o compromisso assumido por Gandhi:

“Humildemente esforçar-me-ei
Por amar
Por dizer a verdade
Por ser honrado
Por não possuir nada que não seja necessário
Por ganhar a vida com o trabalho
Por vigiar o que como e o que bebo
Por não ter medo jamais
Por respeitar as crenças dos demais
Por buscar sempre o melhor para os demais
Por ser irmão para todos meus irmãos.”

Recordo-me que tais posições sempre desafiaram incompreensões que resultaram inúmeras representações administrativas, 52 só na primeira instância, e outras tentativas de remoção compulsória. A primeira delas em 1996, tão logo assumi a Primeira Vara da Infância e da Juventude, e tentava implantar o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8069/90, então já com seis anos de vigência, hoje com 32 anos e ainda longe de ter sido implantada garantindo os direitos fundamentais de crianças e adolescentes.

A primeira tentativa de me tirar do caminho da elite econômica, veio do maior responsável pela efetivação dos direitos dos infantes cidadãos. O então prefeito Cesar Maia descontente com a ordem judicial que determinou que o Município providenciasse socorro social para todas crianças e adolescentes em estado de miséria e abandono fossem socorridos e acolhidos pelos serviços sociais da Prefeitura, promoveu uma Representação visando a aplicação da “pena de remoção compulsória do Juízo que presentemente ocupa, prevista no art. 42, III da LOMAN”.

A Representação teve a Relatoria do Eminente Desembargador Menna Barreto, tramitou no Egrégio Órgão Especial e foi rejeitada por uma diferença pequena de votantes.

O que pretendia o Edil é que eu não tivesse exercido a jurisdição ao atender um pedido do Ministério Público, que com fundamento no artigo 227 da Constituição Federal e artigo 4º da Lei 8069/90, impedisse que “a consciência de todos os cidadãos de bem que convivem com esse quadro cruel de infanticídio. Deixar de acolher os requerimentos de liminar formulados pelo Ministério Público corresponde a uma conivência com esse quadro de omissões e abusos contra crianças e adolescentes, incompatível com a função que exerce a autoridade judiciária.”

Afirmava a ilustre Procuradora do Município que inexistia perigo de mora tão premente, a reclamar ação assim imediata e tão radical.” Passados 27 anos, haveria como responsabilizar essa autoridade pública pelas milhares de mortes e criminalizações sofridas pela negligência do poder público municipal. Segundo dados do UNICEF, Entre 2016 e 2020, 35 mil crianças e adolescentes de até 19 anos foram mortos de forma violenta no Brasil – uma média de 7 mil por ano.

No estado do Rio de Janeiro, de janeiro de 2013 a março de 2019, houve 2.484 homicídios de adolescentes, segundo dados do ISP. Entre as vítimas, 80% eram negros e 70% tinham entre 16 e 17 anos. Ainda assim, a capital concentrou 26% dessas ocorrências, ou seja, 648 vidas interrompidas brutalmente. Entre as causas da letalidade violenta dos adolescentes nesse período, despontam os homicídios dolosos. A segunda causa foi a ação de policiais, crescente nos últimos anos, totalizando 22%. Na capital, a proporção de vítimas fatais por ações da polícia foi de 34%.

Um estudo coordenado pelo Iser e Observatório de Favelas, em parceria com o UNICEF, em 2021, analisou 25 mortes de adolescentes ocorridas na região com a taxa mais alta de letalidade em 2017 na capital fluminense e apontou descaso perante as mortes violentas de adolescentes no Rio de Janeiro.

Quase 10 mil inquéritos sobre mortes de crianças e adolescentes tramitam nas delegacias de polícia do Estado do Rio de Janeiro, desde o ano 2000, sem qualquer conclusão. É o que mostra uma pesquisa realizada pela Defensoria Pública do Rio, que analisou dados da Secretaria de Polícia Civil e do Instituto de Segurança Pública, de forma comparativa. De 9.542 casos de homicídios de pessoas de 0 a 17 anos cujas investigações estão em aberto, 79,5% (7.585 de 9.542) são crimes dolosos e 20,5% (1.957 de 9.542), culposos. A cidade do Rio de Janeiro concentra 34,5% do total de casos (3.298 de 9.542 ocorrências).

Em tempos de tipificações de genocídio, afirmar que não é urgente socorrer crianças e adolescentes pobres abandonados nas ruas da cidade é tão grave quanto deixar os originários Ianomâmis morrerem de fome por falta de socorro.

Charge do Angeli (Redes Sociais)

Na ocasião a procuradora, representante do Prefeito criticava meu linguajar afirmando que “em lugar da fumaça do bom direito temos um “incêndio a queimar as consciências”, lavrando num “quadro cruel de infanticídio”, havendo ainda um “quadro de omissões e abusos contra crianças e adolescentes” – todas expressões literais da decisão – não se há negar que uma dose excessiva de paixão está a obliterar o juízo de decisão. Em verdade, a decisão já está tomada!”

Recordar essa decisão me enche de orgulho, mas também de frustração. Houvesse toda minha paixão queimado as consciência culpadas por esse quadro cruel de infanticídio, e cessado o quadro de omissões e abusos contra crianças e adolescentes, não teria havido tantas mortes. Afirmou o então prefeito que eu com essa decisão havia atentado contra a dignidade da justiça.

O Professor Conrado Hübner Mendes em seu artigo “O Centrão do judiciário” aponta muito bem para o que atenta contra a dignidade da justiça.

SIRO DARLAN – Editor e Diretor do Jornal Tribuna da imprensa Livre; Juiz de Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Especialista em Direito Penal Contemporâneo e Sistema Penitenciário pela ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados; Mestre em Saúde Pública, Justiça e Direitos Humanos na ENSP; Pós-graduado em Direito da Comunicação Social na Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal; Coordenador Rio da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro Efetivo da Associação Brasileira de Imprensa; Conselheiro Benemérito do Clube de Regatas do Flamengo; Membro da Comissão da Verdade sobre a Escravidão da OAB-RJ; Membro da Comissão de Criminologia do IAB. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.

Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


PATROCÍNIO


Tribuna recomenda!