Por João Batista Damasceno –

Inconsistência contábil é um nome pomposo que se dá a fraudes. Em se tratando de empresas de capital aberto, com ações ofertadas ao público, a inconsistência proposital é fraude à Economia popular.

Um dono de padaria arranjou um jeito que lhe parecia simples de pagar menos impostos. Selecionou determinadas mercadorias que seriam escrituradas contabilmente, e sobre as quais pagaria imposto, e outras que não constariam da contabilidade. O esquema funcionou maravilhosamente durante anos. Passou ileso em todas as fiscalizações a que fora submetido. Os fiscais analisavam as escritas nos livros de entradas e saídas – de acordo com a escrita contábil -, conferiam as notas fiscais arquivadas com as escriturações, calculavam o imposto sobre a diferença e analisavam as guias de pagamento de imposto. Tudo em ordem.

O problema é que um dia uma fiscal notou que não havia entrada nem saída de açúcar, na padaria, de acordo com a escrituração contábil. Alguma coisa estava errada. A padaria vendia pão doce, café e açúcar. Mas nas escritas contábeis jamais fora anotado um único quilo da mercadoria. Numa visita ao estabelecimento a fiscal encontrou duas realidades: uma impecavelmente escriturada e outra paralela.

Muitos dos produtos comerciados não constavam da contabilidade, dentre os quais o açúcar. Era o caixa dois do dono da padaria. Coitado! Foi descoberto e rigorosamente autuado. O caso é real e já tem mais de 30 anos.

Inconsistência contábil é um nome pomposo que se dá a fraudes. Em se tratando de empresas de capital aberto, com ações ofertadas ao público, a inconsistência proposital é fraude à Economia popular. Mesmo quem nunca tenha comprado uma ação pode estar sendo lesado pela fraude. Um fundo de pensão que invista em ação de uma empresa fraudulenta pode estar impedindo seus beneficiários do direito à aposentadoria. Uma cooperativa de saúde que faça o mesmo pode levar inúmeras pessoas à perda do direito à vida.

O problema está no modelo neoliberal que tenta afastar da atividade financeira a regulação estatal, possibilitando que alguns poucos bilionários possam causar crises capazes de arruinar a vida de milhões de pessoas e a própria Economia de todo um país.

O ex-ministro da Fazenda Delfim Neto, em entrevista ao programa Roda Viva, em 2019, falou sobre o que se repete no mundo financeiro: “As pessoas devem ler o Relatório Pécora, feito pelo Congresso norte-americano sobre a crise de 1929. Vão ver que os banqueiros cometeram todos os crimes do mundo. E vão ver o seguinte: que banqueiro solto volta para o local do crime”.

Como a crise de 1929 afetou o Brasil?

A crise que se abateu sobre os EUA e sobre o mundo em 2008 decorreu de mais uma fantasia contábil. Os bancos financiavam aquisições de imóveis para pessoas que jamais poderiam pagar as prestações. Quando as pessoas atrasavam o pagamento elas pediam empréstimo dando como garantia o direito de aquisição dos imóveis que jamais seriam seus. Num dado momento a bolha estourou.

A crise financeira, iniciada em 2007, foi causada pela perda de valor de ativos imobiliários, provocou uma reação em cadeia, carregou a Europa, se alastrou pelo mundo e provocou uma recessão global no ano de 2009. Levou à nacionalização de bancos, derrubou governos e gerou taxas de desemprego altíssimas. Num primeiro momento o governo dos EUA salvou duas corretoras da falência, gastando US$ 100 bilhões. Mas o problema era mais profundo. A alegria durou pouco. Uma semana depois, o Lehman Brothers, o quarto maior banco de investimentos dos EUA, quebrou. Todo o sistema foi colocado em discussão, inclusive as agências de certificação que atribuem notas para as empresas e levam o público a investimentos nelas.

Na crise dos EUA uma figura acabou se notabilizando. Foi um investidor chamado Bernie Madoff, que virou filme. Madoff era um administrador de fortunas e por igual processo de escrituração fraudulenta convencia os investidores de que estavam tendo ganhos, quando na verdade o dinheiro dos novos depósitos é que pagavam os rendimentos dos depósitos antigos. Com a falência do Lehman Brothers o público começou a fazer saques e novos investimentos não eram feitos. Daí é que a pirâmide ruiu. Milhões de trabalhadores no mundo perderam suas economias e seus meios de subsistência na velhice.

O tema é complexo, suscita paixões e mexe com grandes interesses. O professor Delfim Neto explicou onde está o problema em entrevista ao jornal GGN, de novo relembrando o Relatório Pécora: “A resposta é que, nos anos 1990 do século passado, o sistema financeiro começou a libertar¬-se da regulação imposta nos anos 1930, alegando que ela prejudicava o desenvolvimento econômico. Com apoio no Congresso e suporte ‘científico’ inventado ‘ad hoc’ por uma tribo de economistas, cujos membros enganam-se e divertem¬-se mutuamente”.

Em momento no qual se discute a autonomia do Banco Central, deferida após o Golpe de 2016, talvez valha a pena incluir na discussão o sistema financeiro, tomando como referência as apurações feitas pelo Congresso estadunidense após a crise de 1929.

JOÃO BATISTA DAMASCENO é Doutor em Ciência Política (UFF), Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Membro do Conselho Consultivo do Jornal Tribuna da Imprensa Livre; Colunista do Jornal O Dia; Membro e ex-coordenador da Associação Juízes para a Democracia; Jornalista com registro profissional no MTPS n.º 0037453/RJ, Sócio honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros/IAB, Conselheiro efetivo da ABI.

Texto publicado inicialmente em O Dia. Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


PATROCÍNIO


Tribuna recomenda!