Por Ricardo Cravo Albin

CRÔNICAS DA PANDEMIA Nº 19.

“A verdadeira medida do homem não está em seu comportamento na zona de conforto, mas sim no tempo das controvérsias. Que tem três lados: o meu, o seu e o correto” (M. Luther King Jr.). Ou: “Quem é você, que não sabe o que diz, meu Deus do Céu, que palpite infeliz” (Noel Rosa – 1934).

Em muitas conversas telefônicas com amigos estrangeiros, sobretudo americanos, vem sempre à baila a frase quase mítica, o Brasil não é para principiantes.

E com frequência se desenha um quadro incômodo para mim pelo acúmulo de controvérsias, verdades e mentiras por aqui. Tantas as contradições neste ano e meio de governo que passo a enumerar alguns dos itens principais que intrigam os meus americanos, intelectuais e professores universitários.

1- Certamente que não pelo espanto do número de óbitos e contaminados pela peste universal, que faz equiparar os dois países. Nesse ponto as contradições de comparação parecem mais claras para meus amigos: eles de imediato enumeram platitudes como extensão territorial, mas se detêm no alinhamento ideológico de Trump e Bolsonaro em questões como negarem a pandemia desde seu início, tendo como resultado imediato a expansão do vírus em todos os estados, de lá e de cá. O remédio milagroso, a cloroquina, defendido com unhas e dentes pelos dois, promoveu ambos ao patamar de curandeiros, com doutorado na Universidade de Gana (rsrsrs), mesmo acentuando que eles nunca tiveram o eleitorado negro nas mãos, ampliando o viés racista, a que também se soma o nacionalismo ferrenho de “Américas para os americanos”, aproximando ambos pelas pontas da autoproclamada extrema direita. O que meus interlocutores não entendem é a acefalia do Ministério da Saúde em plena pandemia, bem como o aparelhamento de milhares de cargos civis por militares. Além da falência dos serviços de boa parte dos hospitais brasileiros, inclusive a falta de equipamentos essenciais. Comentou-se também, para minha vergonha, a corrupção nas compras de respiradores. Logo expliquei ter sido este item uma responsabilidade quase exclusiva de prefeitos, de resto, lá como cá, administradores (desatentos e incultos) para abertura de cidades e escolas em confinamento por rígidos protocolos. Atenção especial, objeto de uma saraivada de piadas, se deveu à resistência inexplicável de ambos os presidentes ao uso de máscaras.

2- Outro item a destacar nas conversas foi a luta contra as fake News e suas ramificações dentro do Palácio do Planalto, incluindo filhos do Presidente. Os belicosos apoiadores de Bolsonaro, em exibições públicas pedindo fechamento do Congresso, incluindo a queima de fogos de artifício em cima do STF, escandalizaram meus interlocutores, que sugeriram prisão imediata dos baderneiros, o que Trump faria se esse crime ocorresse contra a Suprema Corte de lá, ou ainda (o inimaginável para eles) ameaças a qualquer casa legislativa. Isso seria quase tão grave quanto o terrorismo de 11 de setembro. E falando em Corte, eles elogiaram muito a independência do STF e pulverizaram com desdém tanto a nomeação de Aras para procurador-geral, rejeitada por seus colegas procuradores, quanto a decisão do juiz João Otávio de Noronha ao liberar personagem polêmico como Patrício Queiroz, e ainda sua esposa foragida. Mais e mais ironias dos colegas de lá, que sugeriram a pronta cassação de Otávio Noronha do STJ e a demissão de Aras.

3- Outro item me pareceu a maior preocupação dos americanos: o avanço do desmatamento na Amazônia e as queimadas do Pantanal. Fui forçado a considerar que liberar terras e mineração foram explícitas promessas da campanha presidencial. Cobraram, contudo, e incisivamente, a proteção aos povos indígenas e seus direitos, incluindo assistência hospitalar provocada pela pandemia. Com o que concordei com ardor.

4- Mais um tema de conversa foi a guinada de orientação na política externa do Brasil, uma diplomacia agora exótica que atingiria os interesses brasileiros, olhados com olhar caolho e turvo pelo muito exótico chanceler do país. Logo aduzi a necessidade de estímulo para nutrir o comércio bilateral com a China. Calaram-se desta vez.

Ainda quis abordar a indecência da proposta de interesse do governo, patrocinada por Toffoli e Aras ao retirar do Ministério Público acordos de leniência, jogando nos braços do governo como a AGU (Advocacia Geral da União) o desmantelamento da saudável independência da Força Tarefa de Curitiba. Que, expliquei aos interlocutores, foi um raro momento de orgulho da cidadania e de benefícios jamais experimentados no país, como prisões de poderosos nunca punidos e o retorno aos cofres públicos dos milhões roubados da Petrobrás e empreiteiras. Verdade indiscutível que a grande maioria dos eleitores brasileiros reconhece.

E quando estava prestes a fazer a defesa do Juiz Moro, eles apenas me perguntaram se o probo Moro não havia afiançado na primeira hora a moralidade do governo Bolsonaro, como seu Ministro da Justiça. Sequer tive ânimo para retrucar que ao defenestrar Moro o presidente se ligara ao Centrão, deputados oportunistas já apoiadores de Lula, Dilma e Temer, além de devotos do toma lá da cá, para a nomeação de cargos públicos. Uma aproximação que o presidente teria jurado não mais viabilizar. A isso foi obrigado pela má-gestão de sua assessoria política junto ao Congresso Nacional. Onde lhe seriam subtraídos votos para as reformas e um eventual impeachment.

Para certo consolo meu, eles voltaram ao primeiro item das conversas, a proximidade entre nossos presidentes. E afiançaram que Trump também se aliou a segmentos nada recomendáveis no Congresso Americano. Respirei.

Terminei lhes recomendando um humorista brasileiro que foi estimulante filósofo, o Millôr Fernandes, querido amigo de décadas – “Jamais diga uma mentira que não possa provar”.
A carapuça desta verdade cabia como uma luva aos nossos presidentes gêmeos.

Eles, deliciados, me pediram que lhes remetessem alguns livros do imortal Filósofo do Méier, mestre em definir verdades e mentiras.


RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin,  Colunista e Membro do Conselho Editorial do jornal Tribuna da Imprensa Livre.