Por Jorge Folena –
Em 5 de outubro de 2020 a atual Constituição brasileira completou trinta e dois anos da sua promulgação. Desde o afastamento de Dilma Rousseff da presidência da República (sem a devida prova de cometimento de qualquer crime), a Carta Política de 1988 tem sido completamente esvaziada de seu conteúdo político e, enfraquecida como está, tem sido incapaz de assegurar a democracia no Brasil, especialmente no que se refere aos direitos de cidadania e aos direitos humanos, atacados pelo atual governo.
O maior exemplo de que a cidadania está em frangalhos pode ser materializado pela Emenda Constitucional 95, de 2016 (também denominada “emenda da morte”), que estabeleceu o teto de gastos e congelou por 20 anos os investimentos públicos em setores fundamentais para a sociedade, como saúde, educação, cultura, ciência e tecnologia, contrariando os princípios fundamentais da Constituição. Sem investimentos públicos nestes segmentos essenciais, a cidadania estará cada vez mais enfraquecida, como verificado durante a pandemia da COVID-19.
Recordemo-nos de que o processo constituinte de 1987/1988 entregou ao país um documento jurídico que tinha em sua base um tripé fundamental, assim estruturado: a) a preservação da soberania nacional; b) o restabelecimento das liberdades democráticas individuais e coletivas; e c) a garantia dos direitos sociais, neles inclusos diversos direitos trabalhistas que, no seu artigo 7.º, realçavam o simbolismo histórico do trabalhismo na formação política brasileira do século XX.
Nos dias atuais esse tripé deixou de existir, pois foi sendo revogado nos sucessivos governos de 1989 até hoje, restando apenas um arremedo de Constituição, que se tornou paulatinamente incapaz, até mesmo, de assegurar o regular funcionamento das instituições políticas, que a todo momento entram em conflito e não se respeitam.
Isto possibilitou a criação de um ambiente em que setores da burocracia (juízes e militares) tentam se sobrepor para ditar o encaminhamento do país e culminou na eleição de um governo que ameaça a democracia o tempo todo, com uma retórica autoritária de “intervenção” militar.
Aparentemente, todos parecem se esquecer de que foi do espírito da vontade popular que se acendeu a força nacional que exigiu o fim do regime militar autoritário de 1964-1985 e fez cessar qualquer possibilidade de manutenção da ordem militar ditatorial anterior (que, a propósito, não foi um mero “movimento”, como na infeliz expressão do ex-presidente do STF, no dia 01 de outubro de 2018, na faculdade de Direito da USP, mas uma noite dolorosa e prolongada que se abateu sobre a democracia por 21 anos).
A meu juízo, da mesma forma que a Constituição brasileira precisa hoje ser resgatada ao seu espírito original, também as instituições políticas que dela nasceram necessitam ser substituídas para fazer valer a soberania popular, pois ao longo desse período afastaram-se inteiramente dos cidadãos e não dispõem mais de legitimidade nem respaldo da população, faltando-lhes, assim, os elementos essenciais para a caracterização de uma efetiva democracia.
O espírito da Constituição de 1988 estava centrado na pessoa humana, com a finalidade de integrar os cidadãos de forma ativa e permanente para o fortalecimento da democracia e a construção de um Brasil para os brasileiros. Nosso país tem na sua composição majoritária pessoas pobres historicamente negligenciadas pelo poder público, que conheceram a esperança e a possibilidade de justiça social durante um breve período, iniciado em 2003.
Entretanto, a partir de 2016, essa imensa parcela deixou, mais uma vez, de fazer parte da agenda do Estado brasileiro, pois com o golpe do impeachment, voltou a vigorar o abandono oficial da população. Essa mesma política vem sendo ratificada pelo atual governo, que, de forma cruel, só defende os muito ricos e se ajoelha perante Donald Trump, atual representante do governo dos Estados Unidos, em total violação à cidadania e à soberania nacional, princípios fundamentais da constituição de 1988.
Por tudo isso, é preciso lutar pela preservação do que resta da Constituição original de 1988, que ainda pode ser o instrumento para o efetivo resgate do país, da soberania e do poder popular como legítima manifestação da cidadania.
JORGE FOLENA – Advogado; Doutor em Ciência Política, com Pós-Doutorado, Mestre em Direito; Diretor e Vice-Presidente da Comissão de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros. É colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre e dedica-se à análise das relações político-institucionais entre os Poderes Legislativo e Judiciário no Brasil.
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