Por Jorge Folena1 –
O artigo 78, § 3º, da Lei Federal 1.079/51 (Lei Federal do Impeachment) estabelece que, caso seja recebida a denúncia do pedido de impedimento de Governador, “o julgamento será proferido por um tribunal composto de cinco membros do legislativo e cinco desembargadores, sob a presidência do presidente do Tribunal de Justiça local”.
A Constituição de 1934 previu, em seu artigo 58, que: “ O Presidente da República será processado e julgado nos crimes comuns, pela Corte Suprema, e nos de responsabilidade, por um Tribunal Especial, que terá como presidente o da referida Corte e se comporá de nove Juízes, sendo três Ministros da Corte Suprema, três membros do Senado Federal e três membros da Câmara dos Deputados. O Presidente terá apenas voto de qualidade.”
Vale salientar que somente a mencionada constituição estabeleceu esta forma de composição, com a participação de juízes integrantes do Poder Judiciário, para o julgamento de impedimento do chefe do Poder Executivo Federal, em caso de violação à Constituição.
Ocorre que, a partir da Constituição seguinte, outorgada em 1937, todas as cartas constitucionais que se seguiram deixaram de incluir juízes integrantes do Poder Judiciário no corpo de julgadores do impeachment, por ser a natureza deste julgamento estritamente política, e não técnica.
Assim, entendo que o artigo apontado (da referida lei federal de 1951) é incompatível com as Cartas Constitucionais de 1946, as Emendas Constitucionais número 1, de 1967 e 1, de 1969, e a de 1988, na medida em que o julgamento do impeachment tem precípua natureza política, e não técnica, de forma a exigir a participação de integrantes do Poder Judiciário, como magistrados neste tipo de análise.
No julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental número 378-MC, que estabeleceu o rito do julgamento do impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, o STF julgou incompatíveis e não recepcionados pela Constituição Federal de 1988 vários dispositivos da mencionada lei.
Com efeito, a inexistência do sistema bicameral (Câmara Baixa e Câmara Alta) nos Estados-membros da federação, não faz com que os integrantes de um Poder estranho (refiro-me ao Judiciário, órgão eminentemente técnico na sua formação e composição) tenham que participar do julgamento de um delito de natureza exclusivamente política; a participação de integrantes do Poder Judiciário neste tipo de julgamento representa interferência de um poder sobre o outro, a qual é vedada pelo artigo 2º da Constituição (cláusula pétrea da separação dos poderes).
Vale ressaltar que, no julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 378-MC, o Plenário do STF fez constar, na ementa do acórdão, que “a diferença de disciplina se justifica entre magistrados (aqui fazendo referência a integrantes do Poder Judiciário), dos quais se deve exigir plena imparcialidade, e parlamentares, que podem exercer suas funções, inclusive de fiscalização e julgamento, com base em suas convicções político-partidárias, devendo buscar a vontade dos representados.”
Ou seja, o processo de impeachment não implica imparcialidade técnica dos julgadores, que devem ser exclusivamente parlamentares, pois somente devem obediência ao povo, uma vez que o que está em jogo é “a vontade dos representados” (os eleitores), que têm nos parlamentares os seus representantes.
Na verdade, ao Poder Judiciário cabe apenas a verificação da observância dos princípios fundamentais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, funcionando como mero orientador jurídico dos parlamentares durante o processo de julgamento do impedimento.
Como destacou o ministro Ricardo Lewandowski, em 25/08/2016, na abertura do julgamento do impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, no Senado Federal: “o presidente do Supremo Tribunal Federal não exerce qualquer função judicante, limitando-se apenas a zelar para que as regras procedimentais e regimentais sejam observadas, de modo a preservar a isonomia entre as partes e o direito de defesa da acusada”2
Assim, não é compatível com a Constituição e todos os ritos do impeachment, traçados a partir do caso Collor de Mello, em 1992 (e ratificados pelo STF no julgamento da ADPF 378-MC, acima mencionado), que o papel do Poder Judiciário seja de interferência, mediante participação no julgamento político do crime de responsabilidade, que é de natureza política; devendo ser decidido exclusivamente por parlamentares, que devem obediência aos seus representados, os eleitores.
Ressalte-se, ainda, que a inexistência do sistema bicameral nos Estados-membros não é óbice a que a Assembleia Legislativa realize o processamento e o julgamento do impeachment, seguindo o princípio da simetria, de acordo com uma interpretação conforme e sistemática da Constituição, a partir das regras contidas nos seus artigos 52, § único, e 86.
Isto porque no processamento do impeachment exige-se que, depois de aberto pelo presidente da Casa Legislativa, a denúncia seja primeiramente admitida por 2/3 dos parlamentares (seguindo a linha do artigo 86 da Constituição Federal); somente depois dessa etapa se iniciará o julgamento, cujo presidente será o chefe do Poder Judiciário estadual (com a atribuição de verificar o cumprimento do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa), exigindo-se que a votação final para condenação seja também apoiada por 2/3 dos parlamentares, como previsto no artigo 52, § único, da Constituição Federal.
O recebimento da denúncia não incapacita nem torna suspeitos os parlamentares de realizarem posteriormente o julgamento, assegurando e observando o contraditório e a ampla defesa, a exemplo do que ocorre no processo penal, em que o juiz criminal primeiro recebe, ou não, a denúncia e, depois de realizado o processamento segundo o devido processo legal, profere, ao final, a sentença de absolvição ou condenatória.
Portanto, entendo que é incompatível com a Constituição de 1988 a regra do artigo 78, § 3º, da Lei Federal 1.079/51, ao estabelecer a criação de um “tribunal especial”, formado por 5 parlamentares e 5 desembargadores, para o julgamento do processo de impeachment dos governadores dos Estados.
Nesse passo, entendo, em conclusão, que o rito do impedimento de governadores de estado deve seguir, necessariamente, segundo uma interpretação sistemática e simétrica com a Constituição Federal, as regras dos artigos 52, § único, e 86; com a aceitação ou rejeição da denúncia a depender de aprovação, num primeiro plano, por 2/3 dos deputados estaduais; sendo, em seguida, iniciada a fase de julgamento, sob a presidência do Presidente do Tribunal de Justiça local (a exemplo do papel desempenhado pelo presidente do Supremo Tribunal Federal no julgamento de impeachment no Senado Federal, conforme o art. 52, § único, da Constituição Federal); devendo, ao final do processo, a condenação ser aprovada por 2/3 dos parlamentares, caso se entenda pelo impedimento.
Desta forma, por ser este procedimento exclusivamente de natureza política, é inadmissível a participação de integrantes do Poder Judiciário no julgamento, por meio de um tribunal especial, sob pena também de violação à separação de poderes, conforme o artigo 2º da Constituição em vigor.
1 Advogado e cientista político. Doutor em ciência política, com pós-doutorado, e mestre em Direito. Diretor e vice-presidente da Comissão de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros.
2 www.stf.jus..br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo+323748
JORGE FOLENA – Advogado; Doutor em Ciência Política, com Pós-Doutorado, Mestre em Direito; Diretor e Vice-Presidente da Comissão de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros. É colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre e dedica-se à análise das relações político-institucionais entre os Poderes Legislativo e Judiciário no Brasil.
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