Por Ricardo Cravo Albin

“Com o palácio Capanema salvo, creio que deva ser ocupado pelo gigantesco acervo da Funarte e seu centro de documentação”. (Ricardo Cravo Albin)

De fato, o espanto/perplexidade do meio cultural com a notícia da venda do Palácio Capanema salvou-o da insensatez da guilhotina ou de ser visto como mais um negócio vil, avaliado apenas pelos metros quadrados de salas a serem ocupadas por uma empresa particular qualquer. Mas o alarido foi utilíssimo, porque logo se desvendaram outros imóveis que estão a caminho do sacrifício, como a belíssima casa de Afonso Arinos em Botafogo, cujas formas clássicas de um Botafogo épico, mimoseado por belos palacetes, serão golpeadas para que desabroche mais um horror, o infalível espigão sem nenhum caráter, mais um Macunaíma arquitetônico a enfeiar o perfil carioca. Como todos os que amamos e sofremos pelo Rio, estamos saturados de comprovar. E de reclamar.

Aliás, falando nisso, um atento defensor da cidade e dos malefícios que se ousam contra sua integridade urbanística acaba de me telefonar para anunciar que há um surto especulativo no Leblon para demolir pequenos prédios de 2 a 4 andares e lá vicejarem horrendos espigões.

Algo próximo ao desastrado plano do Prefeito Conde para provocar o mesmo trânsito especulativo em Ipanema. Quem lembra? Eu lembro e não perdoo.

Pois bem, na esteira da defesa e da futura ocupação do Palácio Capanema, vieram à baila assuntos urgentes.

Cortou-me o coração saber do estado de deterioração do prédio de 13 andares na Rua São José, que abriga o acervo precioso da Funarte, instituição de minha estima desde os tempos em que Manuel Diegues Jr me levou a trabalhar com ele na então muito dinâmica Fundação Nacional de Artes: lá estão depositados cerca de dois milhões de preciosidades, entre coleções e arquivos pessoais de Fernanda Montenegro, Othon Bastos, Paulo José (saudades…), Eva Todor, Dina Sfat, Maria Della Costa, Djanira (sim, a grande pintora), e até Walter Pinto. Além de publicações e manuscritos de João do Rio, Callado, Martins Pena e Oduvaldo Viana, pai.

Inclusive cenários originais de Gianni Ratto, Santa Rosa L. C. Ripper, a que se soma rara coleção de cartazes dos filmes lançados no Brasil de Vargas até os anos 80.

Isso para não citar arquivos de projetos históricos como o Pixinguinha e os da Sala Sidney Miller, de que eu mesmo participei ao longo de décadas.

A partir de nota do colunista Lauro Jardim, mais uma aflição pública se instalou nos corações dos que cuidam do acervo artístico deste país. Que parece hoje viver sem qualquer olhar, sequer de piedade, para com nossa memória comum.

Para contrabalançar essas descidas ao inferno, o diretor da Funarte Nery Costa acabou de interditar o edifício por temer, com carradas de razão, que o Cedoc (Centro de Documentação da Funarte) possa ter o mesmo destino do Museu Nacional ou da Cinemateca de São Paulo. Aliás, seria ululante (e citando adjetivo cunhado por Nelson Rodrigues, registro que também ele é titular de documentos lá depositados) que todo o Cedoc fosse de imediato instalado no Capanema. E por que também não rogar às autoridades (se de fato existirem) que peça a Cinemateca de volta a São Paulo, que a fez crepitar em incêndio por desdém e abandono? O repórter Gustavo Cunha informou em O Globo que o destino inicial do Cedoc seria o Museu Casa da Moeda, na Praça da República, um imóvel tombado construído há mais de 200 anos, cuja estrutura é antiga e toda feita de amplo madeirame. Acresce que o acervo Cedoc pesa toneladas em pastas de papel. Por trás dos panos, antigos funcionários que exigem anonimato queixam-se de que a interdição do prédio da São José serve como uma luva para os planos de desativar ou privatizar a Funarte. Para que?

Corro a acrescentar aqui que entre os dois milhões de preciosidade, o Cedoc agora interditado preserva ainda acervos raros das rádios MEC e Nacional, esses do meu particular interesse, e até teses acadêmicas.

Portanto, ia-me estender sobre mais observações, que relaciono apenas para comentários posteriores. Como a reativação do Canecão, antiga luta nossa por ser um desperdício absurdo de espaço nobilíssimo da cidade.

Ou a inoportuna mania de mexer em fatos consolidados, como o logotipo da Fundação Palmares, o martelo de Xangô, símbolo afro-brasileiro da justiça. A agora desacreditada Palmares precipitou-se e lançou edital para nova logomarca. Acreditem, é verdade. Martinho da Vila foi breve: “A Palmares acabou. Ponto final”.

Pretendia dedicar duas palavrinhas à grossura do meu antes estimado Sérgio Reis ao ameaçar ações absurdas como arremeter caminhoneiros contra o STF no próximo 7 de setembro. Ou a recuperação de pontos referenciais da estima geral como o Bar Vilarinho, e agora a volta da Fiorentina do Leme, a casa de todos os artistas.

Enfim, entre um soluço e outro ainda há prazeres. Raros, mas os há.

Obs: Já nas Livrarias e em fase de lançamento nas lojas da Travessa o livro da Editora Batel “Pandemia e Pandemônio” – Relatos indignados deste cronista, com recomendações da escritora Nélida Piñon, e dos médicos-cientistas Margareth Dalcolmo e Jerson Lima.

RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.


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