Por Roberto Amaral –
“Podemos estar assistindo à emergência de um líder, oriundo do Sul, que acende esperanças em escala global. Lula está se tornando um ícone dos que demandam uma nova ordem. Nunca houve isso antes. É desconcertante para os que querem continuar mandando em tudo.” – Manuel Domingos Neto, autor de O que fazer com o militar (anotações para uma nova defesa nacional)
A chamada classe-dominante – os herdeiros da casa-grande – não consulta sua história (de que não tem memória) e se recusa a olhar para o futuro. É o aqui e o agora da mediocridade e do atraso. Não há de ser fruto do acaso estarmos, nos primeiros anos da terceira década do terceiro milênio, patinando na periferia do capitalismo. E mesmo no capitalismo permanecemos órfãos de um projeto de sociedade e país. Desde sempre carecemos de pioneiros, de visionários, aqueles que se recusam a aceitar o statu quo como um determinismo, uma fatalidade ou desígnio divino, e se devotam, muitos a vida toda, a intervir na realidade, visando a transformá-la, confrontando os riscos da incerteza, o outro lado da acomodação histórica que nos caracteriza. Ao contrário, criamo-nos e formamo-nos sob o signo da dependência ideológica, a marca colonial que presidiu o império e chega à República dos nossos dias. Caminhávamos e caminhamos no contrapelo daquelas sociedades que puderam construir seu destino, ousando mesmo a aventura do desconhecido.
Nossa formação de cinco séculos registra a supremacia da conciliação sobre a ruptura, o reino da ordem estabelecida que se contrapõe ao progresso, tão bem e tão insistentemente denunciado por José Honório Rodrigues. A busca do novo, a revolução – que quase todos os povos experimentaram na base de seu processo histórico – foi sempre, entre nós, tratada como erva daninha. As reformas permitidas foram tão-só aquelas destinadas a preservar a ordem dominante, a mesma há 500 anos. As mudanças são aquelas necessárias para que tudo permaneça como está, materialização da síntese consagrada por Lampedusa.
Não foram poucos os intelectuais orgânicos, comprometidos com seu povo, que lutaram pela construção de um país desenvolvido e de uma sociedade feliz, desde José Bonifácio e Joaquim Nabuco. No século passado, Darcy Ribeiro, que lograria reunir a intervenção intelectual à ação pública, reconheceria sua frustração. Já no fim da luta, reconheceria haver fracassado em tudo o que tentara na vida, ressaltando, contudo: “Os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”.
Muitos dos vencedores estão hoje em Lisboa no doce farniente promovido pelo empresário Gilmar Mendes.
O líder revolucionário, o que abre as portas para o novo, além de condutor de massas, é agente social, condicionado em seu papel político pela interação entre a consciência de classe e a necessidade histórica, ditadas ambas por circunstâncias que não são de sua escolha, senão aquelas “legadas e transmitidas pelo passado”, como ensinou Marx, mas que não lhe cassam o papel de sujeito: se o indivíduo não escolhe as circunstâncias nas quais atuar, escolhe seu papel diante delas. De Gaulle e Pétain, em 1940, em face da mesma história (a derrocada militar e moral da França) optaram por papéis opostos. Um, epítome da resistência, o outro vassalo do invasor. Entre nós, diante da renúncia de Jânio Quadros, em 1961, o marechal Odylio Dennys intentou um golpe militar e o governador Leonel Brizola liderou o país na defesa da legalidade. Todos, ao tempo em que se escolhiam, interferiam no processo histórico, como Getúlio Vargas em 1954. Com o seu suicídio, o presidente adiou por uma década a ditadura militar que se estenderia por 21 anos.
O líder, quando também pioneiro, revolucionário ou reformista, não é mais simplesmente aquele que em diversos momentos conduz as grandes massas, ou por elas é amado, mas o raro personagem que aponta rumos e é seguido mesmo quando o ponto de chegada é desconhecido. Esse líder não caminha ao lado do povo: este é que o sente ao seu lado na jornada a que foi convocado. Visionário e estrategista, pode ser um profeta; quando interfere na moldagem do futuro, é um revolucionário. Há de ser sempre um gauche na vida: não entende que o indivíduo tenha de se adaptar ao mundo – às condições impostas a sua existência pelas circunstâncias – e por isso forceja por adaptar o mundo às suas necessidades, ou às necessidades de seu sonho.
A história republicana é parca de líderes e reformadores, e a pasmaceira nacional, abalada pelos levantes militares de 1922 e 1924, e ainda subjugada pelo pacto agroexportador que controlava o poder desde a ascensão de Prudente de Moraes, conhece a fratura imposta pelo levante que a historiografia consagraria como “Revolução de 1930”, uma insurreição inter-oligárquica que, no entanto, seria responsável pela modernização do Estado brasileiro.
O que se segue é história consabida. Dela cuido apenas da emergência, a partir desse evento, daqueles nomes que me parecem ser hoje os principais líderes-estadistas dessa fase republicana, e me limito a apenas três, na ordem cronológica de atuação: Getúlio Vargas, o primeiro grande líder republicano e ainda o mais destacado de quantos tivemos; Juscelino Kubitschek, o visionário construtor de Brasília, e Luiz Inácio Lula da Silva, o primeiro líder da classe operária a chegar à presidência.
Vargas é o mais longevo, o mais amado e o mais temido em seu tempo, e, sem dúvida o mais contraditório de quantos estadistas conhecemos, de quantos líderes tivemos, à direita e à esquerda, nesses 134 anos de uma república permanentemente por fazer-se e uma democracia formal temerosa da emergência do povo como sujeito político. Dele podemos dizer tratar-se de esfinge ainda indecifrada, tais as paixões que desperta, passados quase 70 anos de sua morte e 93 anos da tomada do poder, que exerceu por 18 anos (respeitado o interregno de cinco anos entre a queda do “Estado novo” e as eleições de 1950), presidindo uma ditadura e um governo democrático, apeado de ambos por insurgências levadas a cabo por militares antes aliados.
Dele poder-se-á dizer que viveu suas circunstâncias no mais puro sentido orteguiano, dominando-as, até ceder à última investida, aparentemente impossibilitado de agir como agia, lembrando a famosa frase de Lutero: “aqui me acho e não posso fazê-lo de outra forma”. Ficou para a história como modernizador do estado, líder trabalhista e “pai dos pobres”, nacionalista, combatente pela soberania nacional.
Se para Getúlio a política era “a arte do possível”, para JK torna-se o instrumento de uma determinação. Era visionário e profeta. Prometeu “50 anos em cinco”, e em menos de cinco transformou um descampado árido em meio ao Cerrado goiano na capital da república, incorporando o Oeste à política e à economia do país. Sem ferir a ordem democrática, enfrentou duas intentonas militares e um sem-número de tentativas de impedimento.
Lula se destaca, de início, como o primeiro líder nacional oriundo do proletariado, que até sua emergência pedia emprestado à classe dominante seus defensores. Trata-se de fenômeno político extraordinário em país que não conseguiu purgar suas origens escravocratas nem livrar-se do domínio político-ideológico da casa-grande, que sobrevive sob o império da Faria Lima e do agrobusiness. Seu sucesso, uma vitória da classe operária que o formou, é tanto mais significativo quando consideramos que o país que o elegeu mais uma vez em 2022, fraturado pela ascensão do protofascismo, é ainda aquele no qual “a pirâmide do poder assenta sobre o vértice e não sobre a base”, como denunciava José Bonifácio, o moço, no século XIX.
O ex-metalúrgico é o único emigrante das secas, o único não doutor, general ou capitão, e o primeiro brasileiro a eleger-se três vezes presidente da república. Hoje é o primeiro líder da América do Sul com audiência mundial.
É exatamente seu papel de líder mundial que quero pôr em relevo, pois o destaque de seu desempenho deriva da qualidade de suas intervenções mais recentes, como as de Paris, diante de uma multidão que lotava o Campo de Marte, defronte à Torre Eiffel, e sobretudo a que fez no dia seguinte, durante a reunião de cúpula convocada por Macron, quando ressaltou a prioridade do combate à fome, a responsabilidade dos países ricos no enfrentamento à crise climática e a falência das instituições de Bretton Woods.
O Brasil, graças ao seu presidente, é hoje um ator global que anuncia demandas, e pode ser a voz do Sul na cobrança de uma nova ordem mundial, superando alinhamentos automáticos, recusando o dictat das grandes potências, ao tempo em que pôe na mesa das negociações nossos interesses, que jamais se confundem com os interesses dominantes, os quais dão o tom da política internacional.
Anunciamos um país e um continente que não têm partido na disputa dos EUA com a China na tentativa que lhes interessa de preservar a hegemonia comercial e bélica, quando a humanidade aspira à construção de uma ordem baseada na paz, no multilateralismo e na convivência civilizada entre as nações e os povos. O fortalecimento dos blocos regionais é conditio sine qua non, e nossa lição de casa começa com o fortalecimento e a ampliação do Mercosul, a recuperação de organismos como a Unasul e o fortalecimento do BRICS.
A frente externa, todavia, pouco se sustentará se não contar com o apoio da retaguarda nacional – caserna e empresariado –, que jamais se identificou com as iniciativas brasileiras na execução de uma política externa independente, vale dizer, sem subordinação de ofício aos interesses dos EUA, sede do grande capital brasileiro e fonte das doutrinas que dominam os corações e mentes dos militares brasileiros.
Mas é preciso concertar o discurso do governo. Em convescote em Lisboa, ao qual não deveria ter comparecido, o bom ministro Flávio Dino, que boas esperanças tem despertado, decide-se por excursionar pela política externa, e nesse passeio bate de frente com nossa diplomacia, que, sob orientação presidencial, persegue independência ante o conflito hegemônico promovido pelos EUA em face da emergência chinesa. Dino denuncia, como risco para a “democracia ocidental”, o deslocamento de poder para a Ásia. Para nosso ministro, os países asiáticos não “vivenciam” modelos assentados na democracia ocidental. Antony Blinken assinaria embaixo.
Lula, esperamos, poderá cacifar internamente os efeitos de sua diplomacia presidencial, mas, lembra o professor Manuel Domingos, ela “é desconcertante para os que querem continuar mandando em tudo”. Poderá, pois, estar aprofundando contradições internas.
O tempo, juiz de tudo, nos dirá.
***
Esbórnia republicana – Em artigo que precisa ser lido nas escolas do país (“Lisboa é uma festa”, O Globo, 29/06/2023), posto que o mesmo não se pode esperar de certos escalões do poder, a jornalista Malu Gaspar retrata a nanoestatura moral e cívica de nossa classe dominante. Quem não o leu, ainda, que o leia, e passe adiante.
O negócio da exclusão – O Brasil, não se ignora, tem a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas de EUA e China. O perfil dos nossos apenados também é conhecido: eles são majoritariamente jovens pretos pobres, de baixa escolaridade. Ou seja, aqueles de quem o Estado brasileiro, estruturalmente perverso, só se lembra na hora de prender ou matar. Nesse contexto é pelo menos discutível um governo de mudanças, historicamente comprometido com a justiça social, colocar a União como fiadora da construção de presídios privados, em parceria com os estados. Que dados, extraídos das experiências conhecidas, são vistos como positivos? Quem irá fiscalizar essas potenciais usinas de mão-de-obra barata?
(Colaboração Pedro Amaral)
ROBERTO AMARAL – Escritor, jornalista, cientista político, ex-ministro de Ciência e Tecnologia, colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Autor de “Socialismo, Morte e Ressurreição” (Editora Vozes). Em 2015, foi nomeado conselheiro da Itaipu Binacional, foi presidente do PSB. Autor de História do presente- conciliação, desigualdade e desafios (Editora Expressão Popular e Books Kindle). www.ramaral.org
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