Por Danielle Kilgo

Há tendência de ir com a narrativa, sem questionar se está certa.

A morte de Adam Toledo, de 13 anos, poderia muito bem ter estampado manchetes internacionais em 29 de março de 2021, o dia em que foi baleado e morto por um agente da polícia, se a narrativa que surgiu após o assassinato fosse diferente.

Em vez disso, as primeiras notícias do incidente baseavam-se numa declaração policial que dizia que Toledo morreu em um “confronto armado“. Uma imagem de uma arma recuperada no local do assassinato também foi divulgada. Durante um interrogatório com o homem que esteve com Toledo quando a perseguição começou, os promotores alegaram que uma arma estava na mão de Toledo quando a polícia o matou a tiros.

As filmagens de uma câmera corporal divulgadas duas semanas depois do episódio lançaram dúvidas sobre a veracidade da narrativa de que Toledo foi morto após um confronto. Um pequeno vídeo mostra uma perseguição que termina com o garoto virando o seu corpo para o policial, de braços para o alto. Não há arma em suas mãos quando o tiro é disparado.

O gabinete do procurador do condado de Cook disse, desde então, que o promotor “falhou em não se informar totalmente” antes de se pronunciar. Outros vão mais longe e dizem que o promotor mentiu.

Seja como for, a filmagem da câmera corporal mudou a narrativa sobre o ocorrido.

Como estudiosa que investiga a cobertura da mídia sobre a polícia e os protestos, acredito que a morte de Toledo expõe um ponto cego no jornalismo: uma tendência de acreditar na narrativa “dita pela polícia” sem questionar externamente se está certa.

FONTES SÃO CONFIÁVEIS?

Os jornalistas são responsáveis pela rápida criação do 1º rascunho da história. Para isso, a profissão tem rotinas e normas que a ajudam a produzir notícias de uma forma sistemática. Os repórteres de breaking news confiam frequentemente nos relatos e versões feitas por fontes oficiais. Isto inclui constantemente as narrativas e declarações apresentadas por fontes oficiais – políticos, polícia, e porta-vozes.

Estas são pessoas com quem os jornalistas podem trabalhar regularmente; costumam ser mais acessíveis sob a pressão de um prazo – especialmente se os amigos e familiares de uma vítima forem difíceis de alcançar ou menos dispostos a falar com a imprensa. E, mesmo que as fontes oficiais estejam erradas ou digam algo difamatório, um jornalista pode frequentemente relatar o que dizem com impunidade legal.

Tudo isto dá à polícia uma oportunidade de moldar a versão inicial do evento, e leva a sua versão da história à consciência pública antes que as vítimas, as famílias e os seus apoiadores estejam aptos a compartilhar as suas versões.

Mas a polícia molda frequentemente os acontecimentos de uma forma incompleta, enganosa ou apresentada por razões estratégicas. As declarações oficiais podem, intencionalmente ou não, reter ou omitir informações. No caso de Toledo, a declaração original dada à mídia no dia do tiroteio mencionava que “um criminoso armado“, um “homem“, fugiu da polícia e um “confronto” aconteceu. “O agente disparou a sua arma atingindo o agressor no peito“.

Não há nenhuma menção de que, como mais tarde foi revelado, a arma teria sido implantada e Toledo estava levantando as suas mãos. O relatório do episódio listou Toledo como um “desconhecido“ com idade entre 18 e 25 anos – sem dar a dimensão de que Toledo era, na verdade, uma criança.

Do mesmo modo, em 26 de maio de 2020, um dia após a morte de George Floyd em Minneapolis, a polícia da cidade divulgou uma declaração à imprensa que dizia: “Homem morre depois de desconforto médico durante interação policial“. O jornal observou que o “suspeito” tinha “resistido fisicamente” e morreu depois de “sofrer desconfortos médicos“. A publicação não diz que um agente imobilizou Floyd no chão apoiando o joelho no pescoço do homem por mais de 9 minutos.

Meses antes, no relatório de incidente policial que documentava a morte de Breonna Taylor em 2020, em Louisville, Kentucky, os agentes não incluíram detalhes cruciais. Listaram os seus ferimentos como “nenhum” e sugeriram que não houve entrada forçada em seu edifício. Na verdade, foi utilizado um aríete, equipamento para arrombar portas, e Taylor foi baleada múltiplas vezes.

E em junho de 2020, quando um homem de 75 anos fraturou o seu crânio durante um protesto em Buffalo contra a brutalidade policial, a resposta oficial inicial foi que ele “tropeçou e caiu“. O vídeo circulou rapidamente mostrando que ele foi empurrado pela polícia em tropas de choque.

No caso Buffalo, a versão policial da história foi rápida e facilmente contestada. Aconteceu na presença de testemunhas, incluindo jornalistas, alguns dos quais filmaram. Quando, no caso de Toledo, o incidente está longe dos celulares dos espectadores, pode demorar mais tempo para estabelecer com precisão o que aconteceu.

A HISTÓRIA DA VÍTIMA

A polícia não costuma liberar imediatamente as filmagens da câmera corporal – se é que são liberadas. A maioria das filmagens é restrita durante semanas para investigação interna antes de se tornar acessível ao público.

A essa altura, o público pode já ter sido alimentado com uma narrativa sobre o que aconteceu e os antecedentes dos envolvidos.

Os jornalistas têm sido criticados por serem muito rápidos em confiar na polícia para contar as histórias das vítimas. É por isso que o público tende a saber mais sobre as histórias criminais das vítimas e das suas famílias, especialmente logo depois de um incidente, do que sobre as histórias dos policiais que as balearam.

Analisei recentemente a cobertura da mídia nos protestos depois da morte de Stephon Clark em 2018, que segurava um celular na mão quando a polícia o baleou no quintal de sua avó. As pessoas próximas de Clark, como a sua família e amigos, não eram as principais fontes que forneciam informações sobre o caráter de Clark na cobertura.

[Está na hora de mudar a forma como a mídia relata os protestos. Aqui estão algumas ideias].

Em vez disso, ao longo dos 6 meses de cobertura noticiosa analisada, as histórias baseavam-se mais frequentemente em relatos e registros policiais que traçavam o perfil de Clark de forma estereotipada e estigmatizante. As versões foram corroboradas pelo procurador distrital, que divulgou mensagens de texto pessoais e pesquisas na internet de Clark que detalhavam dificuldades de relacionamento e aparentes pensamentos suicidas.

“FRACASSO DO JORNALISMO”

Depois de apresentarem frequentemente relatórios policiais incompletos, enganosos ou completamente errados como fatos, os repórteres e editores estão agora falando sobre o problema. Foi notável que os jornalistas estavam entre os mais críticos da resposta da mídia ao assassinato de Toledo.

“É por isso que os jornalistas têm que parar de reportar os relatos das autoridades como fatos“, disse Nikole Hannah-Jones do The New York Times em sua página no Twitter.

Chris Geidner, o diretor-executivo do The Appeal, site que cobre o Direito e a Justiça Penal, foi mais longe: Isto se encaixa em uma reavaliação mais ampla da mídia sobre as políticas e as práticas que tradicionalmente deturpam e representam de maneira inexata pessoas negras. Inclui iniciativas para diversificar as redações que têm uma longa história de sub-representação de pessoas negras em seus quadros.

Chega em um momento em que a confiança do público na polícia está diminuindo. Uma pesquisa do Gallup de agosto de 2020 mostrou que a confiança na polícia caiu para os seus níveis mais baixos desde que a sondagem começou a registrar o assunto em 1993. Só 48% dos entrevistados disseram que tinham uma grande confiança na polícia. Do mesmo modo, a confiança na mídia atingiu uma nova baixa.

Tratar as fontes policiais com um necessário e apropriado ceticismo poderia fornecer aos leitores uma imagem mais completa de incidentes como os confrontos policiais e interromper um processo que privilegiou algumas vozes em relação a outras.

E não é uma ideia radical: questionar e verificar a informação sempre fez parte do trabalho do jornalista.

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Texto traduzido por Bruna Rossi. Leia o original (em inglês), fonte: Poder 360.


DANIELLE KILGO é professora-assistente de jornalismo na Universidade de Indiana.

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