Por João Batista Damasceno

Eu conheço profundamente a Baixada Fluminense. Conheço quase todos os bairros e com certeza todas as principais vias de locomoção, de Magé a Itaguaí, incluindo parte da Zona Oeste e Vila Militar na Cidade do Rio de Janeiro.

Atuei dezenas de anos na Baixada Fluminense, onde fui juiz por quase 18 anos do início de 1995 ao final de 2012. De 2006 a 2008 fui juiz da Zona Eleitoral cujo cartório ficava há poucos metros do lugar dos assassinatos narrados na matéria cujo link se encontra abaixo.

Sempre soube que os ‘matadores’ têm salários pagos por empresários, cargos comissionados em prefeituras ou contratos de trabalho com órgãos públicos. Os ‘matadores’, na verdade, são agentes paraestatais; é a mais perversa PPP/Parceria-Público-Privada. Se não recebem diretamente de órgãos públicos recebem de empresários que contratam com o poder público. Arma, munição e veículos custam dinheiro e alguém paga. Neste momento estão assanhados. Mas, sempre tiveram atuação desde que foram instituídos os primeiros grupos com autorização para matar. Depois de institucionalizaram e ganharam novas formas e nomes.

Ao assumir a titularidade da Zona Eleitoral da Cerâmica (bairro da execução descrita na matéria abaixo), em 2006, perguntei ao chefe do cartório se tínhamos funcionários ou bens cedidos da prefeitura ou de empresários, colocados à disposição da justiça eleitoral. Ainda que fosse para o serviço seria inadequado para uma justiça encarregada de realizar o pleito eleitoral municipal. Sempre achei estranho que juízes, encarregados de julgar atos do poder público ou de empresários. Mas, alguns se locomovem em veículos lhes cedido para uso pessoal. Tinha e ainda os tem. Disse ao chefe de cartório que se tivéssemos iríamos devolver. A resposta foi negativa. Não tínhamos!

Recebi posteriormente uma informação de que ‘matadores’ estavam atuando com um veículo Gol branco da prefeitura e que estariam promovendo execuções nas madrugadas com o veículo oficial.

Até 2007, quando a polícia promoveu as execuções do Alemão e Coréia, à luz do dia e com filmagem, as execuções e chacinas eram feitas à noite. As chacinas do Alemão e Coréia são um divisor de águas. Em razão do acompanhamento das investigações a Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ, composta dentre outros pelo advogado, juiz de direito aposentado pelo AI-1 e defensor dos direitos humanos, integrante da Associação Juízes para a Democracia/AJD, João Luiz Duboc Pinaud, foi destituída. Parte da diretoria da OAB/RJ vivia um momento de namoro com o governo do Estado do Rio de Janeiro, visando ao pleito eleitoral de 2008.

A ciência de que ‘matadores’ estavam atuando com veículo oficial me impressionou. Não era fato submetido à minha competência funcional. Limitei-me às comunicações que poderia fazer.

Posteriormente o juiz Wanderley Rêgoi pediu-me que cedesse para a Zona Eleitoral que titularizava a funcionária municipal que trabalhava comigo. Disse que não tinha bens ou pessoas cedidas pela municipalidade ou por empresários. Ele me disse que tinha sim e que se eu não quisesse ceder que não o fizesse. Mas, que eu tinha. Em seguida me deu o nome da funcionária e sua matrícula. Pedi prazo para apurar.

Chamei o chefe do cartório ao meu gabinete. Voltei a indagar se tínhamos bens ou funcionários da prefeitura à disposição da Zona Eleitoral. Ele voltou a afirmar que não tínhamos. Pedi que lavrasse uma certidão da inexistência. Ele o fez. Em seguida narrei o que sabia e perguntei pela funcionária. Ele ficou amarelo.

Cientificado de que eu sabia da funcionária, seu nome e matrícula ele disse que a deixara em casa, sem trabalhar, pois se eu tomasse ciência dela eu a devolveria para a prefeitura.

Em seguida perguntei se tínhamos mais alguém à disposição. Ele disse que sim: um motorista. Perguntei que carro ele dirigia e o chefe do cartório me disse que era um Gol branco colocado pela prefeitura à disposição do cartório eleitoral há muitos anos. Fiquei gelado!

Determinei que certificasse, novamente, que não tínhamos outro funcionário ou bem, além da funcionária, do motorista e do carro. Pedi que ligasse para a funcionária e para o motorista para que viessem ao meu gabinete.

Quando o veículo chegou, analisei seus documentos, chassis, números nos vidros, placa e em seguida busquei informação sobre a placa do Gol branco que estava sendo usando em execuções noturnas. Ufa! A placa era outra. Respirei aliviado, mesmo sabendo que o outro veículo Gol continuava a atuar em outras mãos. Mas, não eram os funcionários que trabalhavam comigo.

Restitui os funcionários e o veículo à municipalidade, instaurei sindicância contra o chefe do cartório e fiz comunicação ao TRE/RJ daquela ocorrência. Igualmente comuniquei ao Ministério Público sobre o crime de falsidade contido na certidão lavrada pelo chefe de cartório.

Uma juíza me procurou dizendo que um ex-presidente do TRE/RJ queria conversar comigo sobre o “mal entendido” do chefe do cartório. Não me dispus a recebê-lo e pedi à ‘colega’ que não me trouxesse recados. Sabia quem fora o seu motorista do desembargador (ex-policial) e sua filha, nomeada para o Cartório de Notas de Suruí pelo Corregedor Geral de Justiça, quando eu era juiz em Magé em 1996.

Jamais tive ciência de qualquer providência tomada pelo Ministério Público em razão do crime de falsidade praticado pelo chefe de cartório da justiça eleitoral. O TRE/RJ considerou o fato medianamente relevante e o sancionou, para mim, simbolicamente.

Nas eleições de 2012 eu era juiz eleitoral no bairro ao lado: Posse, onde 4 policiais militares foram protagonistas da maior chacina da história do local. Na época, eles estavam à paisana quando saíram de um bar, ao lado da Funerária São Salvador, com a missão de tirar a vida do maior número de pessoas que encontrassem pela frente. Trabalhadores diversos tiveram suas vidas terrivelmente arrancadas por esses agentes do Estado. O resultado foi um total de 29 mortos, 4 condenações e 1 pergunta: Até quando? Mas, esta história das 29 mortes, da funerária São Salvador e do desembargador, ex-presidente do TRE/RJ que queria falar comigo, será objeto de outra crônica.

Da mesma forma prometo outra crônica sobre o episódio da destituição da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ que estava apurando as chacinas do Alemão e da Coréia em 2007, por pessoas que hoje posam de boa gente defensora da dignidade da pessoa humana. Desde que o Capitão Zamith instalou os seus na Baixada Fluminense, as suas práticas não se alteraram. Na Baixada Fluminense o AI-5 não foi revogado, nem os órgãos de repressão desmantelados.

Em data recente uma ilustre desembargadora federal proferiu voto no qual narrava o custeio da subsistência de um militar que atuara na “Casa da Morte”, em Petrópolis, por empresário de transporte em Nova Iguaçu. Isto também vale uma crônica para estabelecimento dos elos que posso comprovar em decorrência de minha atuação consciente ao longo do período que – de um lugar privilegiado – via suas movimentações.

Muitos juízes atuam e deixam de atuar nas comarcas da Baixada Fluminense, passam pelas comarcas, e não conhecem as relações que nelas se estabelecem. São juízes do que escrevem para eles. Não têm sequer possibilidade de aquilatar os fatos que lhes narram.

Em cada dia trabalhado na Baixada Fluminense eu me inspirava no poeta Thiago de Mello: “Faz escuro mas eu canto”. Sou discípulo de Dom Adriano Hipólito e de Dom Mauro Morelli.

“Faz escuro mas eu canto, porque a manhã vai chegar!”

PS1: A moradora que registrou a execução corre “risco de vida” (expressão usada por Machado de Assis).

PS2: A matéria contida neste link expõe o vídeo gravado pela moradora. As cenas são fortes.


JOÃO BATISTA DAMASCENO é Desembargador do TJRJ; Professor da UERJ; Doutor em Ciência Política (UFF); Membro do Conselho Consultivo do Jornal Tribuna da Imprensa Livre; Membro e ex-coordenador da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro efetivo da ABI; Colunista do Jornal O Dia.