Por Lincoln Penna

Você diria a verdade ao povo dos Estados Unidos. Está certo. Mas sabe o que aconteceria, Wiesenthal? Ninguém acreditaria em você. Eles diriam que você está louco. Seriam até mesmo capazes de metê-lo num manicômio. Como pode alguém acreditar nessa horrível história, a menos que a tenha vivido? (Linhas finais do Post Scriptum do livro de Simon Wiesenthal, O Caçador de Nazistas, no diálogo inusitado com o cabo Merz da SS, pouco antes da chegada do Exército Vermelho em território alemão).

O tempo não passa impune. Ele deixa marcas, rastros, memórias que ao serem recolhidas e relembradas nos ajudam a entender as razões das coisas, mesmo daquelas horripilantes. As boas e más recordações fazem parte da vida das pessoas e das muitas comunidades e sociedades organizadas em torno de seus valores. Não há como se voltar apenas para o futuro se não estivermos seguros do nosso passado, razão pela qual ele é objeto de disputas quanto ao seu significado.

Assim como a escravidão nos atormenta até hoje em razão do longo tempo de existência e de suas sequelas, ou o nazismo na Alemanha com muito menos duração naquele país; mas de profundas feridas deixadas; ambas são marcas indeléveis que não podem ser apagadas. O desaparecimento desses casos não os torna meros registros do passado, pois o que passou nem sempre desaparece de nossa memória e por vezes de nossa cultura política impregnada de lampejos que não se apagam.

Lembro bem de um intelectual alemão que conheci na França, que vivera ainda muito jovem sob o regime nazista conseguindo auto exilar-se nos Estados Unidos. Dizia ele que se permanecesse em seu país naquele tempo ele certamente acabaria se tornando um adepto do regime, não consciente ou ideologicamente por pura adoção, mas porque a euforia ultranacionalista poderia tragá-lo como a muitos de seus contemporâneos.

Essa confissão tal como a do cabo da SS relatado por Wiesenthal retratam bem momentos de um regime que foi da histeria a mais trágica decepção.

Nos dois momentos, uma ausência quase absoluta, a da racionalidade. No primeiro caso, o temor de ser cooptado pela emoção provocada pela situação de uma nação na bancarrota; no outro, a decepção que faz o subalterno de um regime se dar conta de que participara de uma barbárie.

Não vai demorar muito e uma horrenda história terá de ser escrita. Ela envolve os tempos em que vivemos, enlutados pelo mais perverso crime de lesa humanidade perpetrado por agentes do poder. Pessoas que largaram seus escrúpulos de lado para servir docilmente às diretrizes de um governante, que além de errático é capaz de tomar decisões que penetram na incivilidade mais torpe.

O caso mais recente da resistência à vacinação de crianças de 5 a 11 anos de idade, é por si só um atestado de máxima ignorância não fosse o caráter maléfico que tende a produzir.

Respaldado pelos seus agentes ministeriais, como o da pasta da saúde, posterga uma decisão que pode significar o agravamento de um quadro já de graves conseqüências pelo retardo de decisões, tal como ocorreu quando do surto mais grave da covid-19 em plena pandemia.

O paralelo com o nazismo não é gratuito. A lógica da destruição a orientar as decisões daquele regime até os seus estertores é a mesma que preside a política de confronto do governo brasileiro em relação à ciência e aos bons costumes e práticas que o país logrou alcançar, sobretudo no campo das políticas de imunização. Patrimônio que se tornou reconhecido mundialmente, e que hoje está sendo pouco a pouco desmontado por ações de um presidente desastroso, incompetente e, principalmente, determinado à por em prática a destruição como legado de sua governança.

A exigência de consulta pública numa situação de crise sanitária a exigir pronta ação do poder público, e contando com o aval da ANVISA sobre a necessidade de vacinação infantil, foi e tem sido adiada pelo governo, de modo a expor as crianças do Brasil ao desamparo em nome de convicções que não têm fundamento na ciência, e homologada por um ministro da saúde absolutamente servil.

LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon);  Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.


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NOTA DO EDITOR: Quem conhece o professor Ricardo Cravo Albin, autor do recém lançado “Pandemia e Pandemônio” sabe bem que desde o ano passado ele vêm escrevendo dezenas de textos, todos publicados aqui na coluna, alertando para os riscos da desobediência civil e do insultuoso desprezo de multidões de pessoas a contrariar normas de higiene sanitária apregoadas com veemência por tantas autoridades responsáveis. Sabe também da máxima que apregoa: “entre a economia e uma vida, jamais deveria haver dúvida: a vida, sempre e sempre o ser humano, feito à imagem de Deus” (Daniel Mazola). Crédito: Iluska Lopes/Tribuna da Imprensa Livre.