Por João Batista Damasceno –
A morte de Rita Lee nos deixa um vazio.
Ela é o ícone de uma época. Com sua obra dialogou com as transformações sociais desde os Anos de Chumbo, na década de 1970. A primeira vez que ouvi falar dela, foi em 1975, ano do lançamento do disco Fruto Proibido. Eu ainda não tivera a atenção despertada para ela. Mas um colega de escola ouvira, numa pregação religiosa, repúdio ao seu estilo e à banda Tutti Frutti, cujos integrantes viviam numa casa à beira da represa de Ibiúna, onde compunham.
A mãe do meu colega, uma senhora religiosa, endossava orgulhosa tudo o que o filho falava. Ela tinha outros filhos, mas aquele era o prodígio defensor dos valores familiares. Era um menino radical na defesa de Deus, da pátria e da família. O menino discursava sobre sexo, drogas e Rock´n Roll como se soubesse do que falava, tal como alguns pregadores mirins neopentecostais da atualidade. Nas bifurcações da vida cada um de nós seguiu um caminho.
Quando o reencontrei, ele continuava inquieto com o que considerava pecados do mundo. Perguntei pelos seus irmãos e pela sua mãe. Ele disse que ela desaparecera. Isto me impressionou. Ele me apresentou Rita Lee, que passei a admirar, e o desaparecimento de pessoas, que me assombra até hoje, notadamente depois que estudei o tema e passei a atuar em defesa da dignidade da pessoa humana. De vez em quando recordava dele e dos irmãos que não sabiam o paradeiro da mãe.
Em data recente o reencontrei nas redes sociais. Ainda assombrado com o desaparecimento de sua mãe, perguntei por ela. Ele disse que ela reaparecera. Nada mais falou, nem quis assunto comigo. Falei disto para uma amiga comum. Minha amiga começou a rir e disse que a senhora havia efetivamente desaparecido, mas não em situações trágicas como eu supunha. Mas que havia deixado para trás, na pequena cidade em que vivíamos, o marido e a penca de filhos e fugido com um médico, por quem se apaixonara.
A referência que me veio à memória foi o diálogo da personagem de Nicole Kidman com o personagem de Tom Cruise no início do filme ‘De Olhos Bem Fechados’, de Stanley Kubrick, onde narra para o marido o desejo por um desconhecido que avistara: “Na praia, passei o dia inteiro perdida em devaneios. Se ele me chamasse — julguei então —, não teria podido resistir. Acreditava-me capaz de tudo, pronta a abrir mão de você, da criança, de meu futuro; acreditava estar já decidida e, ao mesmo tempo — será que poderá me entender? —, você me era mais caro do que nunca”.
Aquela mãe que aplaudia o precoce conservadorismo do filho, que aos 12 anos repetia como um papagaio os sermões religiosos, também tinha seus desejos e para reprimi-los condenava Rita Lee, que fazia sucesso cantando “Ovelha Negra” e “Luz del Fuego”, além de outras músicas compostas em parceria com Paulo Coelho.
Em 1980, um programa numa TV aberta pretendia se comunicar nas manhãs com as donas de casa. Não era um programa de culinária. Nele se falava de tudo, notadamente de sexo. O programa era apresentado pela sexóloga Marta Suplicy, pelo estilista Clodovil Hernandez, por Marília Grabriela e por Ney Gonçalves Dias, além de outros. A abertura do programa mostrava os bastidores da TV, com apenas mulheres no controle, embalado pelo som da música “Cor-de-rosa Choque”, de Rita Lee.
Rita Lee fez mais pelas sadias relações sociais que muitos discursos, teses ou manifestos. Ela era um manifesto. Era cantora, compositora, multi-instrumentalista, apresentadora, escritora e ativista. Participou de importantes revoluções no mundo da música e da sociedade. Suas canções, evocando a felicidade e o bem viver são recheadas de ácida ironia e com reivindicação de independência e liberdade, o que se depreende das mais populares: “Ovelha Negra”, “Mania de Você”, “Lança Perfume”, “Agora Só Falta Você”, “Baila Comigo”, “Banho de Espuma”, “Desculpe o Auê”, “Erva Venenosa”, “Amor e Sexo”, “Flagra” e “Doce Vampiro”.
Num país marcado pelo militarismo, onde perduram as pensões para filhas “solteiras”, justiça própria para julgar seus crimes, regime de previdência próprio e rede hospitalar própria custeada por toda a nação, apenas o seu nome traz esta referência, sem contaminar sua biografia. Seu pai era descendente de imigrantes estadunidenses confederados do Alabama e Tennessee estabelecidos em Santa Bárbara d`Oeste em São Paulo e o nome composto lhe atribuído, bem como às suas irmãs é uma homenagem ao general Lee, comandante vencido na Guerra Civil Americana ou Guerra de Secessão.
Ela desafiou a sisudez do regime empresarial-militar e contribuiu para uma nova concepção da realidade. Em sua apresentação em Aracaju, em 2012, a artista se mostrou indignada com a violência policial contra os meninos que assistiam ao seu show. Revoltada, denunciou, protestou e xingou os que praticavam a arbitrariedade. Processada, a ação com pedido de danos morais, ajuizada por 35 policiais de Sergipe, foi julgada improcedente.
Rita Lee não foi apenas a Rainha do Rock Nacional. Ocupou lugar dentre os defensores das liberdades públicas; foi vanguarda das liberdades e do bem viver.
JOÃO BATISTA DAMASCENO é Doutor em Ciência Política (UFF), Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Membro do Conselho Consultivo do Jornal Tribuna da Imprensa Livre; Colunista do Jornal O Dia; Membro e ex-coordenador da Associação Juízes para a Democracia; Jornalista com registro profissional no MTPS n.º 0037453/RJ, Sócio honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros/IAB, Conselheiro efetivo da ABI.
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