Por Katia Espírito Santo –
“De qualquer ângulo que se examine o enunciado do Papa, recai sobre nós do setor da Cachaça, a tarefa continuada de elaborar ações estruturantes para o adequado posicionamento e sucesso de imagem que queremos para a Cachaça, o que além da qualidade dos produtos, envolve questões de sustentabilidade, meio ambiente, comunicação e marketing e consumo responsável” – Katia Espírito Santo, produtora da “Cachaça da Quinta” e vice-presidente da APACERJ.
Os grupos de WhatApp são ágeis em responder questões e nos colocar em contato com o mundo real. Com o objetivo de apreender como foi percebida a “brincadeira” protagonizada pelo Papa – veiculada na Internet e destacada pela imprensa, entrelaçando Cachaça e Oração, a partir da peça midiática, cujo coadjuvante é um padre brasileiro, especialista em mídias digitais – lancei de pronto um comentário em três grupos de WhatApp formados por produtores, especialistas e apreciadores de Cachaça. “Pois é! Até o papa! E a Cachaça continua na piada, sempre de forma jocosa e trazendo alguma desconfiança… causando riso e evidenciando mazelas…. O que acham?”
A fala do Papa é polissêmica, o que certamente agradaria por diversas razões e incomodaria por outras tantas. Mas o interesse dessas breves notas e reflexões, não é enfocar como o tema tocou corações e mentes dos fiéis, mas como foi percebido no universo do consumo e da produção da Cachaça.
A “brincadeira” ou discurso intencional do Papa repercutiu no Brasil… produzindo burburinho, posts, sambinha, matérias promocionais de vendas de produtos e comentários nas rodas do WhatApp, enquanto os bares encontram-se fechados…
A quem e como a mensagem agrada.
Há os que entendem que a fala se esgota no fato de produzir humor, diversão, riso. Outros ressaltam que, da notoriedade magnânima e da benevolência do Papa, “emana o bem; e quem se identifica com a brincadeira é também do bem”. Em alusão a essa perspectiva, é possível supor que o mal estaria em se querer entender um pouco mais… o que já provocaria o insustentável peso de algum comentário crítico ao enunciado do Pontífice.
O plano do humor crítico foi amplamente aceito, mas também provocou a percepção de injustiça à Cachaça, por não ser somente ela consumida tão ampla e irresponsavelmente… Mas vindo do Papa… há toda ordem de salvo conduto. Muitos acham positivo o Papa Francisco citar a Cachaça, o que por si já engendraria a superação do tom pejorativo da comparação.
Prevalece a visão de que o brasileiro é brincalhão e divertido, e por isso a fala do Papa caiu como uma luva. A mais recorrente perspectiva, é que o enunciado é cheio de bom humor, graça, sendo percebido como oportunidade para descontração e leveza. De forma reiterada, destaca-se que “essa forma jocosa e simpática é muito bem recebida pela maioria das pessoas” do universo imenso da cachaça, que, em geral, gostam de descontração, piadas e ironias, afirmam muitos.
Há os que indicam, com convicção, que se trata de “algo dirigido a nós brasileiros, por ser o Papa “um camarada muito inteligente, que tem uma palavra para cada cristão”. “Sem falar que ele é uma figura muito conhecida, e tudo que sai da boca dele tem muita repercussão. Alguns podem se ofender, outros menosprezar, mas na média, foi positivo”. Afinal, o Pontífice, “por sabedoria”, usa imagens carregadas de “muitos sentidos”, mas “fazendo sobressair o lado positivo”.
Ainda que alguns tenham achado inadequado ele ter dito que o povo brasileiro não tem solução, acharam pop demais, o Papa , na sequência, vir com a Cachaça, por conhecer a bebida… falou com sorriso no rosto e logo deu a bênção.
A personagem Cachaça ganha voz própria: diz-se que, por ter sido evocada, “ a Cachaça já perdoa” qualquer deslize da brincadeira papal, e, ainda, “a cachaça, tem esta característica visceral que é o bom humor”.
Não faltaram os que se concentraram na piada, fazendo alusão bem humorada à tradição popular advinda do sincretismo de religiões de matriz africana e católica: o que o Papa não sabe é que antes de se beber cachaça, é costume dar um tantinho da dose ao santo.
Há ponderações que correlacionam possíveis impactos positivos para o universo da cachaça, como pelo fato de “muitas pessoas no mundo terem ouvido a palavra Cachaça” emanada do Papa, “elas podem se lembrar da bebida brasileira e despertar o interesse e a vontade de experimentar”.
Nesse grupo de visões predominantemente positivas, há comentários complementares, que tiram consequências a partir da piada. O senso da oportunidade trazida pela peça protagonizada pelo Papa, uma figura amplamente reconhecida, respeitada e bem vista no mundo, ganhou expressão: “A fala do Papa, ainda que não seja da forma que gostaríamos ou achássemos a mais adequada, atinge mais pessoas do que podemos supor” e, também, “achei um tom de brincadeira… Poderia ser de outra forma… Mas, no final das contas, foi o Papa falando da Cachaça. Quando poderíamos imaginar isso?”.
Do ponto de vista pragmático, alguns enfatizaram que “certamente provocará matéria de mídia, temos que aproveitar e achar um gancho, algo inteligente e bem humorado”. Outros estamparam anúncios dos seus produtos em posts correlatos e matérias promocionais surgiram.
Em resumo, a maior parte das pessoas entende como positiva a mensagem papal, umas se detendo ao plano da diversão da piada, outros tecendo algum senão, mas fazendo sobressair o lado bom; outros, focados no sentido útil de alguma ação comercial; sem faltar os que se entusiasmam com a oportunidade do mote do momento para se ampliar e qualificar a Cachaça.
A quem e como a mensagem desagrada.
A Cachaça, ao ser evidenciada na piada – inegavelmente engraçada e irônica, envolta pelo carisma do Papa – acende o alerta da atenção para os que se dedicam a elaborar o destilado nacional com o zelo minucioso de um monge católico.
As manifestações que contestam a brincadeira do Papa sobre a Cachaça são minoritárias. Mas há os que acharam a manifestação “desagradável e desnecessária”, assim como há quem tenha enfatizado que “a brincadeira do Papa imprime à Cachaça um caráter maligno, mas a culpa foi logo remetida a uma “falha da assessoria” papal. Lamenta-se o fato de o Pontífice, “sempre tão ponderado, ter apresentado o comportamento de um argentino despreparado em um campo de futebol”. Critica-se a dubiedade da mensagem, em que “o tom convida ao riso, mas há nele sarcasmo a um povo pinguço, que só bebe cachaça”.
Não foram poucos os que indicaram desnecessário o tom pejorativo à Cachaça, pois mais uma vez, a Cachaça foi a piada jocosa, para se evocar alguma desconfiança… causando riso, mas sublinhando mazelas, por vezes causadas por outras bebidas.
Mas não faltou a perspectiva utilitária, ao se postular “que falem mal, mas falem…”, destacando a “oportunidade de fazer do limão, uma limonada”.
Em tom de contestação sóbria, vaticina-se: “a Cachaça não é oposta à oração. Oremos para que o Papa tenha uma visão melhor da Cachaça”.
A síntese crítica aponta haver prejuízo de imagem à categoria Cachaça, sempre que se insiste em associá-la aos males do Brasil ou usá-la como sinônima de qualquer uso abusivo de álcool e consumo irresponsável de bebidas. Mas das críticas sobressai a necessidade de se valorizar a Cachaça e destacar a potência da qualidade da bebida nacional e sua importância cultural e gastronômica.
A título de conclusão
Entre o dito e o não dito, a linha e a entrelinha, os sentidos possíveis sobre o comentário do Papa, encontram-se acima destacados. Foram escassas as vozes severamente críticas, mas muitas vozes fizeram ressalvas, mesmo rindo da piada. De uma forma ou de outra, buscou-se alguma oportunidade para tematizar a cachaça ou para ações comerciais.
O carisma do Papa Francisco tocou os corações e mentes, sendo que foi visto como muito positivo o fato de a Cachaça ter entrado fortemente na universo digital, entendido como oportunidade, seja de comunicação sobre a imagem, seja de comércio do produto.
Teria sido o Papa a voz mais potente, até hoje, a projetar a Cachaça a territórios variados e distantes do planeta? Não sabemos, ainda, qual a capilaridade da repercussão, mas ela depende agora, em larga medida, de como se apresentarão as múltiplas vozes sobre a Cachaça.
Ainda que se tenha apontado como positivo o fato de a palavra Cachaça ser ouvida e disseminada, muito provavelmente essa circulação será majoritária entre nós brasileiros, já conhecedores da Cachaça e dos seus múltiplos significados, qualidades e problemas, ainda que se admitam outras disseminações.
Há quem goste da descontração fugaz da piada; há quem não valorize o enunciado, por supor que seja levado pelo vento; há os que se incomodam, em razão de a Cachaça ser associada a mazelas da fé (um terreno pantanoso, para usos inadequados); há os que entendam como uma oportunidade e tentam extrair consequências, para se falar sobre Cachaça ou simplesmente para ampliar as vendas.
Prevaleceu o entendimento sobre a oportunidade de diversão e de comunicação sobre a Cachaça.
>>Leia também: Conceito exclusivo eleva Cachaçaria Magnífica em patamar superior de qualidade
Depois dos risos, brincadeiras, músicas, posts engraçados, pode haver ainda oportunidades para se elaborar peças comunicativas que enfoquem a cachaça com propriedade, de modo que surfem na crista da onda trazida pelo Papa. Para além de ações comerciais, precisamos nos dedicar a posicionamentos, linguagens, estilos, comunicando bem esse produto tão singular do Brasil e múltiplo de entendimento. Afinal, há polissemia na fala do papa, tanto quanto há dubiedades nas comunicações gerais sobre a Cachaça.
O enunciado do Papa, a circulação do vídeo e o perfil técnico do padre especialista em mídias sociais permitem inferir a intencionalidade da fala e da peça de comunicação, sendo o resultado o Papa pop “viralizando” na Internet, com a Cachaça consequentemente destacada e reportada, inclusive, na imprensa escrita e na TV, no âmago do território católico do Brasil.
Em tom de brincadeira, descontraído e afetuoso, o Papa Francisco exortou os fiéis para que cuidassem também das suas preces e fé… A Cachaça foi o pretexto cultural e social – ao mesmo tempo, costume e vício, clara e sutilmente evocados – para tocar o coração de grupos católicos de brasileiros, suscitando percepções e comentários como “Ele sabe de nós, conhece bem o brasileiro, sabe do que gostamos, sabe brincar, está junto a nós”. Mas não se trata de avaliar a estética do enunciado, nem muito menos de criticar o Papa, pois ele está cumprindo o seu papel, com o direito legítimo de se dirigir a católicos, como Jesus se dirigia a multidões do seu tempo, sem denegrir o vinho…
Seria leviandade realizar comentários sobre a estética e ética da fé, pois estas são tecidas em outras óticas, distintas das leituras possíveis para nós, do universo cultural e gastronômico da Cachaça, ainda que majoritariamente católicos, mas não estudiosos da religião.
A professora Aline Bortolleto assinalou a longa tradição dos representantes do catolicismo com a produção de bebidas alcoólicas, o Champagne de Dom Pérignon, as cervejas dos monges Trapistas e o próprio termo “Spirit”, bebida espirituosa, designando a categoria de destilados. Cabe acrescentar, o milagre do vinho de Cristo, assim como o fato de os jesuítas, terem sido donos de engenho e produtores de cachaça no Brasil. A propósito, o Papa pertence à Congregação dos jesuítas.
É fácil inferir, o Papa critica carinhosamente o cristão que abusa do consumo de álcool, mas do ponto de vista do mercado, o uso do termo na “brincadeira” foi inadequado, pois na realidade atual do Brasil há muitas outras bebidas alcoólicas envolvidas no problema.
A Cachaça é nosso patrimônio histórico, cultural, gastronômico, social e econômico. O termo Cachaça não deve ser usado como sinônimo de consumo excessivo de álcool, na medida em o consumo abusivo envolve bebidas diversas como cerveja, vodca, e aguardentes diversas….
De qualquer ângulo que se examine o enunciado do Papa, recai sobre nós do setor da Cachaça a tarefa continuada de elaborar ações estruturantes para o adequado posicionamento e sucesso de imagem que queremos para ela, o que além da qualidade dos produtos, envolve questões de sustentabilidade, meio ambiente, comunicação e marketing e consumo responsável.
KATIA ALVES ESPÍRITO SANTO é produtora da “Cachaça da Quinta” e vice-presidente da Associação de Amigos e Produtores de Cachaça do Estado do Rio de Janeiro (APACERJ)
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