Por Lucas Rubio –
De que montanha saiu o monstro.
Repetidas vezes, grandes atos nasceram muito antes de sua realização, mas poucas pessoas se dão conta disso.
Quando se trata da Coreia do Norte, a grande parte das notícias que chegam pelos veículos tradicionais sempre trata o país com estigmas e sem a análise crítica necessária, noticiando de modo raso somente algumas das atividades da liderança, sempre apelando para chavões e polêmicas.
No sábado, dia 10 de outubro de 2020, data na qual a República Popular Democrática da Coreia comemorou o 75º aniversário de fundação do Partido do Trabalho da Coreia, foi realizado um desfile militar de proporções giganticas e que impressionou o mundo principalmente por conta dos novos e modernos armamentos de vários tipos apresentados: de equipamentos individuais nos soldados a mísseis balísticos intercontinentais.
Mas a origem dessas surpresas apresentadas há poucos dias remonta a meses atrás e não surpreenderia as pessoas caso tivessem acesso às notícias da Coreia, que são possíveis de serem lidas em vários idiomas na íntegra pela internet.
Há exatamente um ano, em meados de outubro de 2019, Kim Jong Un escalou o Monte Paektu em um cavalo branco, num momento que foi tachado pela mídia como “show fotográfico”, mas que na realidade simbolizou uma mudança sólida de atitudes e sinais da Coreia para o mundo. O Monte Paektu é considerado o local de nascimento do povo coreano há 5.000 anos atrás e também foi a região na qual o revolucionário Kim Il Sung organizou uma guerrilha contra a ocupação japonesa (1910-1945) e, mais tarde, também estabeleceu a resistência durante a Guerra de Libertação da Pátria (1950-1953) contra os EUA.
Rodeado por oficiais do Partido e do Exército, Kim Jong Un fez declarações no topo do Monte que nos dão pistas do que foi apresentado na semana passada. Em uma nota na mídia estatal de outubro do ano passado, é possível ler:
«Sendo testemunhas de cada momento de reflexões do Máximo Dirigente no topo do sagrado Monte Paektu, os acompanhantes tiveram a convicção de que será traçada uma grandiosa operação que voltará a surpreender todo o mundo e que a Revolução Coreana dará outro grande passo adiante.»
Pouco tempo depois, em dezembro de 2019, o Comitê Central do Partido se reuniu num importante encontro e certas declarações do próprio Marechal Kim Jong Un também nos dão uma boa visão dos seus planos antecipados para o país:
«A imensa e complicada obra de desenvolver os sistemas de armamentos sofisticados, que possuem somente alguns países avançados nas ciências e tecnologias de defesa nacional, requereu que buscássemos por conta própria a solução inovadora no aspecto científico e técnico, e todas as tarefas de investigação foram cumpridas perfeitamente pelas forças autóctones, ou seja, por nossos fidedignos cientistas, projetistas e trabalhadores da indústria bélica.
Este salto nas ciências sofisticadas de defesa nacional fará irreversível que tenhamos superioridade técnico-militar, fomentará muito mais o aumento do poderio estatal, elevará o controle sobre a situação política regional e imporá aos inimigos grande inquietude e pavor.
Enquanto os EUA continuarem a gastar tempo e vacilar em terminar as relações com a RPDC, acabará se vendo obrigado a não dispôr de nenhum meio ante à escalada imprevisível do poderio da Coreia e ficará em apuros.
Redobramos a decisão de não mudar por nada a segurança e dignidade de nosso Estado nem a segurança do nosso futuro.
Se não trabalhamos duro para incrementar a capacidade de autofortalecimento e ficarmos esperando o levantamento das sanções, se fará mais forte a ofensiva reacionária dos inimigos que arremeterão para bloquear nosso avanço.”
A paciência da Coreia tem limites como a de qualquer outro. A Coreia já foi longe demais para ser manipulada com palavras fantasiosas. Vale um pequeno retrospecto: em 2018, a RPDC anunciou o fim dos testes nucleares e missilísticos, engatou conversações com a Coreia do Sul e até mesmo com os EUA, propondo metas realísticas de apaziguamento da tensa situação regional. Entre 2018 e 2019, a Coreia Socialista ofereceu várias garantias da interrupção do programa nuclear e estabeleceu sólidas conversas, além de múltiplos encontros com Donald Trump. O que recebeu de volta? Aplicações de mais sanções econômicas, realização de exercícios militares conjuntos EUA-Coreia do Sul em suas fronteiras, ameaças diplomáticas, hostilidades na fronteira por parte do Sul e mais retórica vazia de “avanço nas conversações” que já não mais faziam sentido algum.
Tentaram enganar Kim Jong Un e a Coreia para ganhar tempo. Mas os coreanos já são experientes há tempos nisso. Estava na hora de demonstrar que o país está vivo e ativo no cenário internacional. Parece que alguns mísseis têm o poder mágico de lembrar algumas pessoas e países de seus compromissos assumidos.
Análise técnica
Desde o início de seu governo, Kim Jong Un tem dado grande importância às armas estratégicas: mísseis modernos e poderosos, aliados a um programa nuclear. Tais armas possuem poder estratégico e diplomático muito maior do que milhares de tanques ou aviões no mundo da guerra moderna e a Coreia parece ter entendido bem disso. A linha histórica do desenvolvimento de mísseis da RPDC remonta décadas atrás, mas desde 2012, com especial atenção para 2017, dá um grande salto: sai de um estágio de produção interna de mísseis baseados nos soviéticos ou chineses e ganha completa autonomia, com o desenvolvimento de tipos próprios e com tecnologias nacionais.
Desde julho de 2017, a RPDC já possui o mais poderoso tipo de míssil, o intercontinental, chamado Hwasong-14, que na época foi desacreditado pelos especialistas militares ocidentais. Mas foi em novembro do mesmo ano que a Coreia alcançou sucesso no teste de um outro míssil, ainda mais potente, capaz de chegar seguramente a todo o território dos EUA, o Hwasong-15, que pôs fim às análises que diziam coisas como “míssil de papelão”.
Depois de testado o Hwasong-15, a Coreia ingressou num regime que durou quase 2 anos sem qualquer teste de mísseis. O ritmo de testes voltou apenas em meados de 2019, com o lançamento de projéteis reativos e tipos intermediários, porém altamente modernos e carregados por caminhões feitos na própria Coreia, o que é – acredite – estrategicamente muito importante. Talvez o mais “alarmante” dos testes nesse período tenha sido o de um novo tipo de míssil submarino, o Pukguksong-3, que é uma evolução de um ancestral de 2015. Aliás, ele também já foi superado por um novo sucessor: o Pukguksong-4S, também apresentado no desfile da semana passada.
No sábado, o que adentrou a praça Kim Il Sung sob trilha sonora impressionante durante as comemorações gigantescas fez o público levantar e olhar curioso (e confiante) para a avenida: um novo tipo de míssil ainda maior e amedrontador.
Aparecendo na parada militar logo atrás do Hwasong-15, até então o mais poderoso míssil coreano, o novo armamento, talvez chamado de Hwasong-16, é um míssil balístico intercontinental com alcance mínimo de 13.000km e com capacidade de carga de ao menos o dobro do seu antecessor: entre 2 e 3,5 toneladas. É um míssil móvel de quase 30 metros de comprimento, alimentado com combustível líquido e transportado por um caminhão (também de novo tipo) com impressionantes 11 eixos e 22 rodas. A estratégia militar da Coreia Popular estabelece como método de lançamento não o uso de silos de mísseis estáticos, mas sim o emprego de caminhões movendo mísseis poderosos que podem ser camuflados, movimentados e lançados de qualquer parte do país, sem despertar a atenção do inimigo que vigia a todo momento o território coreano com satélites militares.
O alcance já não é uma meta a ser batida, uma vez que desde 2017 todo o território dos EUA está ao alcance das armas norte-coreanas.
Aparentemente, o que o Hwasong-16 traz de novo é a sua capacidade de carga, levantando a possibilidade desse novo míssil carregar em seu interior múltiplas ogivas nucleares, não apenas uma. Aliás, vale citar que a RPDC também já domina a tecnologia de miniaturizar poderosas ogivas de bomba de hidrogênio. A nova cabeça de guerra (a “ponta” do míssil que transporta a carga útil, ao passo que o resto são tanques de combustível e motores de propulsão) é muito maior que o as cabeças anteriores e o diâmetro aumentado indicaria justamente essa nova capacidade.
O míssil foi uma grande “surpresa”. Ninguém fazia ideia de que ele apareceria até poucas horas antes do desfile e ninguém sabia sequer o seu formato. Aliás, essa é uma peça-chave da estratégia norte-coreana: o sigilo. Apenas poucas horas antes do desfile é que alguns portais de análise levantaram a hipótese, baseados em informações da inteligência sul-coreana, de que talvez um novo míssil intercontinental fosse apresentado. Mas não se sabia nada. Não sabemos nem ao menos o seu nome, apenas especulamos. Isso mostra como a RPDC consegue cumprir rígidos protocolos de guardar bem segredos militares, o que deve ser alvo de salvas, não de críticas. É assim que funciona uma guerra e um exército.
À essas lacunas duvidosas, sobram as análises – quase sempre desdenhosas – dos “especialistas ocidentais”. A balança sempre pesa terrivelmente para um dos lados: ou o míssil é completamente falso, inútil e ineficaz ou então é totalmente destrutivo e diabólico. Cada declaração atende a um argumento diferente de trato para com os coreanos (país desprezível vs perigo para a paz mundial), que se resume à hostilidades e sanções, no fim das contas.
Mas a Coreia Socialista provavelmente testará o míssil nas próximas semanas ou meses. E mesmo que teste, levando em conta o histórico do país, não teremos acessos a grandes dados técnicos – faz parte do jogo. O máximo que as notícias da mídia norte-coreana costumam a liberar são dados de trajetória de voo, que sempre são de grande altitude e terminam no mar, uma vez que o país não dispõe de grandes dimensões territoriais.
O que conta é o mundo real e ele prova historicamente que nações que não cuidaram dos seus assuntos militares de defesa acabaram desaparecendo ou sendo esmagados pelas potências rivais.
Ataque ou defesa?
Para muitas pessoas, simplesmente não faz sentido a perseverança da Coreia do Norte em seu programa nuclear e balístico, mas talvez esteja faltando considerar algo que desde os tempos de Roma já é ditado: se queres paz, prepara-te para a guerra.
A RPDC muito corretamente interpretou o cenário ao seu redor e mais além e observou com atenção a história do mundo. Entendeu que sem desenvolver meios de defesa poderosos, iria sucumbir diante de um contexto de bloqueio econômico e militar internacional. Kim Jong Il, líder antecessor da Coreia, traçou a chamada Política Songun, uma estratégia que coloca o Exército como a maior prioridade da nação.
Defesa, não ataque. Mísseis poderosos e ogivas potentes para defender, não para atacar. Garantem assim as autoridades norte-coreanas há muito tempo e Kim Jong Un, em um discurso que emocionou os presentes na parada militar, deixou bem claro:
«Nosso dissuasivo de guerra, que deve contribuir para defender a soberania e o direito à existência do Estado e a preservar a paz na região, jamais será utilizado arbitrariamente para outros fins nem como meio de ataque antecipado. Mas, caso alguma força atente contra a segurança do nosso Estado ou recorra a meios militares contra nós, eu a castigarei mobilizando com antecipação nossos mais poderosos meios de ataque.
Esclareço que nosso dissuasivo de guerra não aponta a ninguém, pois serve para a autodefesa.»
O que, para alguns, pode parecer um desperdício dos escassos recursos do país, na verdade possui uma lógica no mecanismo interno da República Popular. O que opera dentro da nação é a chamada Linha Biungjin, ou Linha de Desenvolvimento Simultâneo: desenvolvem-se as forças militares em sincronia com a economia nacional. Todos os desenvolvimentos militares demandam esforço científico, técnico e material que também são convertidos para a economia interna e para o incremento da vida da população.
E quem tem olhos comprova: nos últimos anos, a economia norte-coreana tomou um grande impulso, com a construção a todo vapor de novas cidades, prédios de habitação, fábricas, escolas, hospitais, zonas de turismo, etc.
A arma do diálogo
A República Popular Democrática da Coreia existe. E quer continuar existindo. Essa ideia básica e elementar – afinal, os povos têm o direito de existirem e se organizarem de forma independente e pacífica – parece apavorar os interesses hegemônicos de algumas nações.
A Coreia Socialista está, dia a dia, provocando e respondendo uma questão: armas nucleares e poderio militar devem ser monopólio de algumas poucas nações? É correto chantagear nações pequenas impondo poder militar exorbitante? É justo sufocar um país porque não se concorda com sua existência independente?
Quando Kim Jong Un faz entrar na praça um “super monstro” e também várias outras novidades, como tanques e mais de 30 novos equipamentos, ele não está guerreando. Está dialogando. Já vimos isso acontecer uma vez e veremos outras vezes: quando um país impõe a sua existência e a sua resposta ativa, até mesmo os mais poderosos impérios colocam a mão na consciência e docilmente sentam para dialogar.
Ainda naquela reunião de dezembro de 2019, ele disse:
“Embora seja para nós imprescindível o ambiente exterior favorável à construção econômica, não podemos vender a nossa dignidade defendida até hoje como nossas vidas em troca de ‘transformações elegantes’”
O desfile do dia 10 e as armas apresentadas não devem ser celebradas unicamente em suas matérias físicas em si. Um míssil é um míssil. É uma tragédia que a Humanidade precise ainda hoje se impôr por meio da força e de armas de destruição. Tais armas devem, porém, ser concretamente aclamadas como conquistas de um povo pequeno em números e recursos, mas gigante em determinação e coragem. Afinal, não é qualquer um que tira para um duelo a nação mais poderosa do mundo – e muitas vezes até ganha.
Kim Jong Un entende o seu povo e o povo coreano entende o seu líder. Não há nada que se possa fazer contra isso, gostemos ou não. E ele ali está para, em suas próprias palavras, “castigar qualquer um que use de meios militares contra a Coreia”. Ninguém entrará na Coreia para roubar seus recursos, privatizar suas riquezas, desmantelar seu Estado e cortar os direitos da população.
Estamos, no Brasil, há tanto tempo sem líderes que, quando vemos um, nos assustamos e ficamos confusos.
A Coreia está de pé e ninguém a enganará. E ela tem um líder e um povo que cumprem promessas. Nos inspiremos neles – estamos precisando!
*Publicado originalmente no site do Centro de Estudos da Política Songun – Brasil
LUCAS RUBIO – Presidente do Centro de Estudos da Política Songun-Brasil, Coordenador do Núcleo de Política Internacional do jornal Tribuna da Imprensa Livre, Graduado em Letras com habilitação em Língua Russa pela UFRJ.
MAZOLA
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