Por Carlos Pronzato

Entre 1964 e 1973, Joaquin Salvador Lavado, mais conhecido como Quino, alimentou diariamente o planeta com as frases sempre agudas da sua criação mais famosa: a menina irreverente de seis anos, Mafalda. Após 1973 e até hoje, as tiras da “heroína zangada que não aceita o mundo como ele é”, nas palavras de Umberto Eco, continuaram circulando em inúmeras publicações e explodiram ainda mais com a chegada da internet e das redes sociais. Em 30 de setembro passado, um dia após completar 56 anos da primeira aparição pública da sua criatura, Quino faleceu aos 88 anos.

O cartunista argentino poderia ocupar um pedestal ao lado dos grandes pensadores do mundo ocidental? As provocações intelectuais da pequena notável aguçaram o espírito crítico dos seus leitores? A tira diária foi o resumo cotidiano de uma época marcada pelo consumismo capitalista? Filósofos, antropólogos, cientistas sociais e políticos, analistas do mundo moderno e contemporâneo, teriam atingido o mesmo impacto e o poder de expansão das ideias estimulantes da filha do Quino?

Mafalda provoca sempre, com suas perguntas objetivas e desafiantes, um terremoto interno nas convicções sociais do mundo adulto. Poucas palavras são suficientes para fazer tremer as estantes do denominado – e pétreo – senso comum. Não há injustiça que escape, episódios marcantes da sua época ou acontecimentos rotineiros da vida conjugal e familiar de onde o humorista gráfico extraia considerações contundentes postas na boca da sua questionadora e insistente garotinha. Ou seria ao contrário? A convivência contínua entre ambos, criador e criatura, nas conversas a luz do dia, perscrutando as notícias nos jornais ou sob a iluminação artificial do estúdio madrugada adentro, percorrendo a silhueta gorducha com o lápis, não teriam criado a simbiose de uma única pessoa, um espelho borgeano de dupla mão, onde Mafalda, personagem constituída, ditasse suas próprias frases ao seu criador?

Conjecturas à parte, a irrupção no nosso mundo – espoliado, degradado e destruído pelos irracionais poderes financeiros -, da irreverente dupla Quino/Mafalda, trouxe uma cálida brisa diária de alegria e otimismo a milhões de pessoas. Mas Quino deixou este mundo, esse mesmo globo terrestre onde Mafalda alguma vez colocou uma placa com os dizeres: “Cuidado! Irresponsáveis trabalhando”. Mafalda ficou órfã, mas abrigada no coração de quase todos, que escutarão por sempre as insólitas e afiadas observações da eterna garotinha rebelde de seis anos.

Dizem que certa vez perguntaram a Quino como seria hoje uma Mafalda adulta e ele respondeu: “Mafalda nunca teria chegado a ser adulta, estaria entre os 30.000 desaparecidos da ditadura militar argentina”.


CARLOS PRONZATO – Cineasta documentarista, poeta, escritor, membro do IGHB.

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