Por José Macedo

Dia 28 de julho, completam 82 anos da morte de VIRGULINO FERREIRA DA SILVA, vulgo LAMPIÃO. Foi “herói ou bandido”? Para mim, não foi, nem herói, nem bandido, foi um cangaceiro.

Não pretendo fazer narrativas, até porque as encontramos em milhares de livros, peças de teatro, programas de televisão, jornais, filmes e até em folhetos de cordel. Muitas delas são fantasiosas e estão no imaginário das pessoas, às vezes, deformadas ou falsas, elaboradas, em função da visão e instrumental de análise de quem escreve. O escritor, Eric Hobsbawm, escreveu o livro “Bandidos”, onde tece comentários sobre o Nordeste brasileiro e Virgulino, o Lampião. Aqui, não pretendo internacionalizar o assunto, como fenômeno mundial. Prefiro mostrar as situações e condições concretas nas quais viveu Virgulino. Do mesmo modo, distingo Virgulino Ferreira da Silva do personagem Lampião.

O Nordeste brasileiro era uma Região de difícil acesso, geograficamente, isolado do resto do país, esquecido pelo governo, com secas constantes, fatores determinantes, para que centenas de famílias emigrassem para outros Estados. A fome e a miséria faziam parte do cenário inóspito e avassalador, onde, somente os fortes sobreviviam. O Virgulino nasceu no Estado de Pernambuco, no município de Serra Talhada, em pleno semi-árido, vivenciou a difícil luta de seus pais e demais famílias pela sobrevivência. Obviamente, ele não poderia ser um modelo ou agente preparado para superar seus conflitos e angústias, embora educado, inteligente, ordeiro e trabalhador, considerando as condições locais e familiares.

Lampião e Maria Bonita (Acervo MIS)

Desde cedo, Virgulino demonstrava ser uma pessoa sensível, um excelente artesão, desenhava e fazia peças em couro, já demonstrava alguma liderança entre os irmãos. Lampião não foi um facínora em tempo integral, praticou atrocidades, porém, é sabido, também, atos de bondade e de humanismo. Assim como, era, profundamente, religioso, o que revela sua personalidade contraditória e de que vivia em conflito consigo mesmo. Em momentos do dia, no cangaço, pedia que todos ficassem em silêncio e rezavam juntos. Tenho convicção de que não foi nascido e criado para ser criminoso.

O Nordeste brasileiro tinha identidade especifica e, em função de suas condições concretas, era um campo fértil para a proliferação de cangaceiros, de fanáticos e de justiceiros. Nesse sentido, apoio-me nas lições do escritor, Rui Facó que, com profundidade, descreveu o cangaço e suas origens, com magistral precisão, entendido como fenômeno histórico e social, enfatizando a ausência do Estado, fazendo com a Região fosse objeto de exploração pelos mais fortes, os donos da terra. Assim é que, 97% da população era analfabeta, em virtude da ausência de escolas, por omissão do governo. Nessas circunstâncias, o Cangaço foi uma resposta desse povo sofrido pelo abandono, peso das consequentes injustiças e das desigualdades sócio-econômicas, que eram impostas àquela gente. Não havia escolhas, ou você nascia rico ou miserável, o que era dificílimo romper esses grilhões da desventura e da escravidão.

Nesse quadro desfavorável aos pobres e despossuídos, a luta pela terra era a forma de tentar sobreviver, transformada em uma renhida luta política contra o poder local, que explorava e oprimia. O exercício arbitrário das próprias razões (justiça pelas próprias mãos) era a forma encontrada pelos oprimidos na busca de solução dos conflitos. Aquela gente era obrigada a submeter-se ao poder dos poderosos, tornava-se presa fácil e vitima dos instintos e desejos dos fazendeiros, políticos influentes e também operadores da Justiça. A solução dos conflitos, as constantes disputas de terras nunca favoreciam os mais pobres, que não tinham acesso a uma justiça imparcial. Os assassinatos por encomenda eram frequentes, como ocorreu com o pai de Virgulino, morto por um tenente, a mando de Saturnino, seu vizinho, que o acusava de delitos, jamais praticados. Virgulino teve seu destino traçado, não teve escolhas, uma continuidade do que acontecia com outras famílias e jovens, o destino de tornarem-se cangaceiros e justiceiros, caso não se subordinassem àquela situação de dominação.

Revista ‘O Cruzeiro’, 6 de março de 1937

Virgulino nasceu ali e cresceu, aprendeu que seria impossível conviver com injustiças. Não havia alternativa, que não fosse a vindita considerando a honra subjetiva da família, que teria de ser reparada, mesmo que fosse com sua vida e seu sangue. Sua família era trabalhadora e ordeira, ele, do mesmo modo, educado e obediente, até aquele dia em que foi assassinado seu pai, José Ferreira. Zé Saturnino, o mandante, era influente, sabia de que a justiça era parcial e não seria condenado ou preso. Assim, Virgulino, sofrendo a perda do pai diante do túmulo, prometeu fazer justiça, vingar aquela morte e as perseguições sofridas pela família. Assim, assumiu a obrigação de ver a honra de seu pai e de sua família reparadas, apesar do alto preço que teria de pagar.

Nesse tempo, entrou no grupo de cangaceiros, liderado por Sinhô Pereira, um famoso cangaceiro, que se aposentara. A justiça teria de ser feita, dizia. Na prática, era a lei do mais forte fazendo-se impor, mesmo, pela força das armas, porque não vislumbrava outro jeito. Em pouco tempo, Virgulino entra no Cangaço e torna-se Lampião, famoso, admirado por uns e odiado por outros. Sua fama e valentia tornaram-se conhecidas. O cangaço era a forma, considerando a impunidade e demais circunstâncias, a forma de fazer justiça, não importando, se pelas próprias mãos. Naquele contexto, era a busca desesperada de satisfazer a perda do “bem da vida”, em função da impossibilidade de acesso à Justiça, esta monopólio do Estado, porém sob o mando privado dos poderosos.

Lampião, Maria Bonita, o fotógrafo Benjamin Abrahão e outros cangaceiros, 1936. Sertão nordestino, nas proximidades do rio São Francisco (Acervo IMS)

O homem nordestino era criado e educado sob rígidos princípios, para ser valente e honrado. Então, sua honra subjetiva jamais poderia ser maculada e, quando atingida, deveria ser defendida, mesmo que tenha de perder a própria vida. No dizer de Rui Facó, “não era ainda uma luta diretamente pela terra, mas era uma luta função da terra”. O homem do Nordeste era, umbilicalmente, ligado à terra, quando dela era privado, tornava-se capaz de praticar as piores atrocidades. Mas, sendo os latifundiários detentores de grandes extensões de terra, eles monopolizavam o poder político e a violência contra os menos favorecidos. No contexto das disputas nasciam violência, perseguições e mortes, “em função da terra” e pela terra. A criança nordestina crescia ouvindo dos pais: “você nunca apanhe, porque seu pai nunca apanhou”. O homem normal e “médio” do Nordeste, mesmo em sua miséria e inferioridade, “não aguenta desaforo”. Virgulino assim foi educado, apesar de que nunca tenha sido violento e desordeiro, até o dia em que foi assassinado seu pai. Nessa oportunidade, farei uma digressão, falando de violência, uma adequação ao homem nordestino.

Os trágicos troféus de Angico. Piranhas, Alagoas (Acervo IMS)

Na segunda metade do século XIX e metade do século XX, surgiram falsas teorias, pseudo ciência, que sentenciava ser o nordestino “refratário” da civilização, por que nascido da união de três raças, branca, indígena e negra, formando um tipo inferior, o que explicava a alta criminalidade entre os nordestinos, negros e caboclos, concluíam os pseudos cientistas.O escritor, Euclides da Cunha, absorveu essa teoria, foi influenciado por Nina Rodrigues, pelo positivismo e pelo médico italiano, o legista Cesare Lombroso. O nazismo pautou-se nesse sentido, quando Hitler imaginou purificar a raça ariana, era a eugenia. Nessa loucura racista, matou mais de 6 milhões de judeus, ciganos, negros, comunistas, homossexuais e deficientes.

No Brasil, nas eleições de 2018, assistimos esse preconceito contra o nordestino, o negro e os homossexuais. A política do atual governo aplica métodos discriminatórios contra a Região nordestina e contra o índio. É sabido, dessas injustiças e discriminação, do que pouco se fala, porque os meios de comunicação são do domínio dos Estados do Sudeste e Sul. O atual governo mostra-se preconceituoso, discrimina os Estados do Nordeste, quando observamos a distribuição de verbas, a destruição de programas sociais, o abandono à educação e à saúde. Assim, vejo que o velho preconceito, contra o pobre, o negro, o índio e o nordestino não foi, neste século XXI, superado.


JOSÉ MACEDO – Advogado, economista, jornalista e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.