Por Carlos Mariano

Vinte de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares, foi celebrado como Dia da Consciência Negra. A ideia era usar a data para relembrar a luta dos negros escravizados que se rebelaram contra o sistema escravista. A data reúne também diferentes ações de combate ao racismo e reascende o debate sobre a chegada dos negros ao país, a escravidão no Brasil e o racismo estrutural da sociedade brasileira.

Foi em 2011, no governo da presidenta Dilma Rousseff, por meio da Lei nº12. 519, que foi oficializado o “Dia da Consciência Negra”, mas se hoje temos espaço na agenda pública civil para lembrar, debater e defender a memória e a luta do povo preto no nosso país, é porque existiu todo um movimento cultural e político dos negros e negras ao longo da nossa história para que possamos hoje estar aqui, refletindo sobre a memória de Zumbi e os seus.

É preciso destacar que a ideia de eleger 20 de novembro, morte de Zumbi, como o Dia da Consciência Negra veio dos ativistas do Movimento Negro Unificado (MNU) que, em 1978, reuniram-se em Salvador e decidiram que esse era o dia para relembrar e manter acesa a chama da luta contra o racismo dentro do movimento negro. A lei de Dilma, portanto, só referendou uma proposta que já era reivindicada pelo movimento negro.

Do ponto de vista cultural, a escola de samba, expressão artística que nasceu da luta dos negros marginalizados pela política elitista da Primeira República, também fez um movimento ao longo de sua história, no sentido de preservar e lutar pela memória de Zumbi dos Palmares e de seu povo preto.

História essa também retratada em épocas diferentes e com narrativas também distintas, nos carnavais que, de forma emblemática, ajudaram a construir a consciência negra de hoje.

Em 1960, o grêmio recreativo escola de samba Acadêmicos do Salgueiro, sob a batuta do intelectual branco, comprometido com a causa negra, Fernando Pamplona, levou para a avenida o enredo “Quilombo dos Palmares”. Em 1988, foi a vez da Unidos de Vila Isabel, no centenário da abolição da escravatura, levar para a avenida “Kizomba, a Festa da Raça”, enredo imortal de autoria de Martinho da Vila – intelectual, sambista negro e maior compositor da escola.

Esses dois desfiles marcaram a história do carnaval no país. O primeiro, como o precursor em trazer para avenida um personagem negro como sujeito da nossa história. Já o segundo foi um manifesto negro, que fez do desfile da Vila uma espécie de vitória e afirmação política da raça negra, utilizando o maior espetáculo da terra, o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro.
Mas, diferentemente de outros carnavais, esses fizeram e fazem história por serem narrativas que servem de ensinamentos e reflexão para o combate ao racismo estrutural, que infelizmente ganhou força no Brasil de 2018 para cá.

Zumbi dos Palmares, de Fernando Pamplona, conceituado artista plástico oriundo da Escola Nacional de Belas Artes, vai ajudar a construir a chamada revolução salgueirense. Uma série de mudanças que vão impactar os desfiles das escolas de samba a partir da década de 1960, transformando-os em grandes espetáculos, em que a estética do luxo e do visual vão se sobrepor sobre o samba no pé. Apesar disso, Pamplona também será o responsável pela insistência de alçar o negro como protagonista dos enredos das escolas de samba – tendência que começou já nos fins dos anos de 1950.

Quilombo dos Palmares, enredo do Acadêmicos do Salgueiro para o carnaval de 1960, mostrou uma “civilização quilombola” que estava escondida nos livros de história do Brasil. É um enredo épico, no qual Pamplona transforma Zumbi em uma figura mítica, heroica, líder de uma diáspora negra dentro do Brasil colonial.

A narrativa salgueirense tem como grande objetivo eternizar Zumbi como herói negro que deu a vida pelo seu povo. O enredo faz uma metáfora genial com a Tróia antiga destruída pelos gregos.

Portanto, Pamplona, com seu “Quilombo dos Palmares”, transforma Zumbi num grande personagem de uma história do Brasil épica e consagra a escola de samba como lócus da memória do povo preto e seus heróis.

Vinte oito anos depois, em 1988, a minha querida Unidos de Vila Isabel apresenta um enredo escrito e elaborado por Martinho da Vila. Compositor, intelectual e ativista negro, Martinho apresenta “Kizomba, a Festa da Raça”.

Naquele ano, ficou decidido que quase todas as escolas de samba do grupo principal do carnaval carioca falariam do centenário da abolição da escravatura. Martinho, que já era um militante da causa dos direitos do povo preto no Brasil e na África desde a década de 1970, resolve escrever um enredo genial, que acaba se tornando um manifesto político negro inédito na história da cultura nacional e não impacta apenas o Rio de Janeiro, mas todo o país, de Norte a Sul.

A Kizomba de Martinho nasceu na África em um bate-papo do compositor com o romancista angolano Manuel Rui Monteiro. Kizomba é uma palavra do quimbundo, uma das línguas da República Popular de Angola, que significa encontro de pessoas que se identificam numa festa de confraternização. Mas, o revolucionário desfile da Vila Isabel, no dia 15 de fevereiro de 1988, foi muito mais que uma festa: foi um grito de reafirmação de Zumbi dos Palmares como símbolo da liberdade do Brasil. Martinho, de forma genial, reconduz o fio condutor da história do desfile do Salgueiro de 1960 e traz para a passarela do samba uma leitura e narrativa nova e ousada de Zumbi. Leitura essa muito influenciada pela luta do movimento negro.

Ao contrário de Pamplona, Martinho não quer contar a história de Zumbi e deixá-lo lá eternizado como herói. Mas, quer trazê-lo para a avenida, junto ao seu povo, para viver, protestar contra a marginalização dos nossos irmãos pretos aqui no Brasil e na África. Quer reivindicar direitos para os negros e pobres na Constituição de 1988, promulgada naquele ano. A Kizomba de Martinho é um manifesto negro feito pela escola de samba, agremiação carnavalesca inventada pela criatividade do povo afro-brasileiro.

Outro detalhe desse desfile antológico da Vila é que a escola vivia uma grave crise financeira, não tinha nem quadra, além de muitas dívidas. Quem assumiu a direção da agremiação foi Lícia Maria Maciel Caniné, conhecida popularmente como Ruça – na época, esposa de Martinho. Mesmo dentro desse quadro caótico, Ruça conduziu a escola e, com o genial enredo, foi a primeira presidente mulher a ganhar o título de campeã do carnaval carioca.

Assim, a Kizomba, da Vila de Martinho e de Ruça, extrapolou os limites do carnaval se transformando num marco político da consciência negra e se impôs como proposta política reivindicatória acerca das questões raciais brasileiras. Pela primeira vez o sambista negro se posicionava, de forma objetiva, e dizia que o desfile de escola de samba não era o ópio do povo, como parte da esquerda marxista apregoava e, sim, um espaço revelador do pensamento político das comunidades pobres do Rio de Janeiro.

A Vila, com seu desfile afro-brasileiro de Kizomba, conquista o título de campeã do carnaval daquele ano, como também, revolucionava o carnaval carioca de então.

A concepção vitoriosa e triunfante do luxo e riqueza trazida pela Beija Flor de Nilópolis nos fins dos anos de 1970, personificada nos carnavais do genial carnavalesco Joãozinho Trinta, foi, em 1988, derrotada por um desfile pobre financeiramente, mas criativo esteticamente, pois a Vila veio rústica e aguerrida como pedia o enredo. E no plano ideológico, a Kizomba de Martinho escrevia uma nova página na história dos desfiles das escolas de samba: o negro tinha autoridade e competência para falar dele e de sua história, também tinha autoridade para ser ator político da sociedade e da democracia brasileira.

As escolas de samba, muito antes de termos um dia da consciência negra, já debatiam com muita clareza o assunto. Depois dos desfiles antológicos de Salgueiro e Vila Isabel, nossa sociedade evoluiu para o desenvolvimento de pautas que incluíssem a discussão da luta contra o racismo. Em 1988, ano em que a Vila Isabel ganhava de forma contundente, pela primeira vez, seu título de campeã do carnaval do Rio de janeiro, foi criada, em 22 de agosto de 1988, a Fundação Cultural Palmares, cujo o objetivo era a preservação da arte e da cultura afro-brasileira.

Hoje, a Fundação Cultural Palmares se encontra nas mãos de um presidente, Sérgio Camargo, nomeado pelo governo ultradireitista de Jair Bolsonaro, que promove uma desconstrução tosca da imagem da instituição. A começar pela desconsideração que faz da figura de Zumbi e dos negros que lutaram pela liberdade da raça negra. Algo inadmissível, pois joga no lixo toda a luta de nós, negros e negras, por liberdade e democracia social neste país. O movimento negro precisa urgentemente se posicionar perante a falta de respeito que a atual administração da Fundação Palmares tem em relação à memória do povo afrodescendente do Brasil.

Reviver as experiências históricas da nossa luta, como procurei relatar neste artigo, é tão importante do ponto de vista intelectual, pois mostramos a dimensão plural do que é ser brasileiro, quanto do ponto de vista prático, porque deixamos acesa a chama da resistência e luta por liberdade ensinada por Zumbi.

Zumbi Vive!


CARLOS MARIANO – Professor de História da Rede Pública Estadual, formado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisador de Carnaval, comentarista do Blog Na Cadência da Bateria e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.

Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com