Por Luiz Carlos Prestes Filho

Membro da Plenária Anistia Rio, Vera Vital Brasil, ativa participante da Comissão da Anistia, em entrevista exclusiva para o jornal Tribuna da Imprensa Livre afirma que: “O atual governo federal tenta inverter propósitos e/ou mesmo de encerrar os trabalhos de reparação das vitimas da ditadura militar”. A suspensão de medidas expõem a estratégia de destruição das políticas voltadas para o fortalecimento da democracia no Brasil.

Luiz Carlos Prestes Filho: A políticas públicas voltadas para os Direitos Humanos estão sendo desmontadas pelo atual governo federal?

Vera Vital Brasil: As políticas públicas, em especial as de Direitos Humanos conquistadas nas últimas décadas, têm sido um alvo especial de desmonte e destruição no governo Bolsonaro. O processo de ataque a estas políticas se iniciou em 2016, com o golpe jurídico político midiático que afastou a presidenta Dilma. E, durante um ano e meio da gestão deste atual governo tem-se evidenciado um acelerado ataque ao que foi construído à duras penas, de forma tardia e incompleta no campo da reparação. O Estado brasileiro no cumprimento de suas obrigações, devido à prática sistemática de violações de Direitos Humanos, criou Comissões regulamentadas por leis de reparação ou de responsabilização pelos danos provocados devido aos crimes de lesa humanidade cometidos por agentes públicos durante o
período ditatorial. Desde que foram criadas, os sucessivos governos respeitaram sua finalidade e estatuto de Estado, entretanto, este atual governo tem dado demonstrações inequívocas de desincumbir-se desta função.

Luiz Carlos Prestes Filho: Existe uma tentativa de inversão de propósitos nas políticas públicas?

Vera Vital Brasil: Os órgãos encarregados da reparação dos crimes cometidos pelo Estado brasileiro, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, criada em 1995 pela Lei 9.140, e a Comissão de Anistia Política, em 2002, pela Lei 10.559, ambas na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso, foram atingidas, desde 2016, pela limitada destinação de recursos, pela suspensão das várias iniciativas de reparação em curso, pelo afastamento de conselheiros. No governo Bolsonaro as Comissões têm experimentado uma tentativa de inversão de seus propósitos e/ou mesmo de encerramento de seus trabalhos. Podemos dizer que a suspensão de medidas ou componentes de reparação, a substituição de conselheiros, o número elevado de indeferimentos de requerimentos, expõem a estratégia de destruição das
políticas de reparação dos danos, finalidade das duas Comissões.

Luiz Carlos Prestes Filho: Foi importante a atuação do Estado brasileiro assumir a função reparatória?

Vera Vital Brasil: Até 2016 os conselheiros da Comissão de Anistia se referenciavam no julgamento dos requerimentos à anistia política em critérios de reparação pautados pela Justiça de Transição. Se nos primeiros anos de funcionamento da Comissão de Anistia o foco esteve voltado para a reparação econômica, a partir de 2007 estiveram em curso atividades variadas que, frente ao esquecimento imposto pelo longo período ditatorial, buscavam construir memória, convocando a sociedade civil a participação e ao acesso sobre o que havia ocorrido. O Projeto “Marcas da Memória” reunia filmografia sobre a época, peças de teatro, Seminários nacionais e internacionais, publicações, ampliavam o acesso ao debate público. Com igual expansão, as “Caravanas da Anistia” percorriam o país com sessões de julgamento, lançando a voz de testemunhos. Assim, a caminho da reparação integral estavam instaladas atividades que envolviam a reparação econômica, compensatória pela ruptura dos projetos de vida; a reparação moral, com o pedido de desculpas de autoridade pelo dano causado; a reparação psicológica; a construção de memória individual e coletiva; da verdade sobre os acontecimentos do período. O Estado brasileiro vinha assumindo parte de sua função reparatória, ainda que o âmbito da justiça estivesse vetado pela Lei de Anistia de 1979, que auto anistiou os torturadores e mandantes dos crimes, mantendo até hoje uma interpretação falaciosa.

Luiz Carlos Prestes Filho: O deslocamento da Comissão da Anistia de um ministério para o outro trouxe consequências negativas?

Vera Vital Brasil: A Comissão de Anistia Política, até então, vinculada ao Ministério da Justiça, no governo Bolsonaro foi deslocada para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. A Ministra Damares Alves anunciou no início de sua gestão uma revisão das anistias políticas e, sem que fosse concluído o inquérito, acusou de irregularidades a construção, no terreno da UFMG, em Belo Horizonte, do Memorial da Anistia. Criticou a produção de publicações e, segundo ela, estas atividades de reparação apontavam para um excesso de gastos públicos. Buscou atacar a gestão que havia ampliado o espetro de medidas de reparação e dignificado os perseguidos políticos. Recentemente, sem repercutir na mídia, saiu o resultado oficial do inquérito sobre o Memorial da Anistia, onde não se constatou irregularidades.

Luiz Carlos Prestes Filho: As sessões de julgamento continuam?

Vera Vital Brasil: Neste governo as sessões de julgamento da Comissão de Anistia são marcadas por acusações aos requerentes. Se ouve nas plenárias o flagrante e grotesco desrespeito aos peticionários. Ofensas e acusações de terroristas são fatos frequentes que atingem a dignidade de todos os perseguidos e expõe a inversão dos lugares de vítimas e algozes.

Luiz Carlos Prestes Filho: O atual governo questiona a veracidade dos trabalhos da Comissão da Anistia nos governos anteriores?

Vera Vital Brasil: No marco da pandemia a violência à memória dos perseguidos e a destruição de direitos adquiridos se acelera no país e nestes organismos de reparação. No mês de junho a Comissão de Anistia anulou 291 anistias de cabos da Força Aérea e, nos últimos dias, a ministra de forma monocrática negou o pedido de muitas anistias. A promessa é de que o próximo grupo a ser revisado será os dos que participaram dos movimentos grevistas dos anos 70. Por sua vez, na Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, a presidente, procuradora federal Eugenia Gonzaga, foi afastada em 2019 de sua função por ter esclarecido e se oposto às declarações inverídicas e ofensivas do presidente Bolsonaro, ao atacar a memória do desaparecido político Fernando Santa Cruz, pai de Felipe Santa Cruz, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Foi aberto um processo contra ela que, recentemente teve o resultado de nada comprovar de irregularidade em sua gestão. Entretanto, o atual presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Marco Vinicius de Carvalho, justamente na data do Dia Internacional de apoio às Vítimas da Tortura, 26 de junho, ao relatar um processo já concedido anteriormente e buscando argumentar para a sua negação, coloca em dúvida a palavra das vítimas: “as pessoas que se julgam afetadas…” Mereceu de parte da representante de familiares uma resposta contundente e inequívoca: “se julgam não, presidente, somos!”

Luiz Carlos Prestes Filho: A mobilização continua?

Vera Vital Brasil: Frente às manobras de toda ordem ocorridas nestas duas Comissões de Reparação, anistiados e anistiandos têm se mobilizado, sensibilizando parlamentares para as possíveis investidas de mudanças nas leis, lançando manifestos, participando de entrevistas nacionais e internacionais para denunciar irregularidades e mudanças, não reconhecendo como legítimos representantes os atuais membros. A Relatoria para Memória, Verdade e Justiça, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, acompanha de perto este processo de luta de anistiados e anistiandos.

Luiz Carlos Prestes Filho: Como surgiu a iniciativa “Plenária Anistia Rio”?

Vera Vital Brasil: Desde janeiro de 2019, no início do governo Bolsonaro, levando em conta seus pronunciamentos como parlamentar, avesso aos Direitos Humanos, de defensor de torturadores e tendo a clareza da necessidade de fortalecer o movimento nacional foi criada a “Plenária Anistia Rio” que reúne vários segmentos de luta pela reparação. Organizamos em julho do ano passado um grande evento na OAB/RJ trazendo a memória das lutas com uma exposição, filme, peça de teatro, debates e testemunhos. Participamos de evento no Congresso Nacional em Brasília, por ocasião do dia da Anistia Política, em agosto. Com a pandemia as reuniões não mais puderam ser presenciais, mas estão sendo retomadas. Lidando permanentemente com a interrogação se o sistema jurídico brasileiro será capaz de assegurar o direito à memória, a verdade e à reparação, o movimento está vigilante a manobras políticas de indeferimentos de processos, invalidação de anistias já concedidas. Estamos atentos à tentativa de reversão do processo simbólico pela imposição de uma narrativa alheia aos princípios dos Direitos Humanos. Ativistas repudiam a sórdida intenção deste governo de aproveitar-se da crise pandêmica para acelerar o processo de destruição de conquistas.


LUIZ CARLOS PRESTES FILHO – Cineasta, formado na antiga União Soviética. Especialista em Economia da Cultura e Desenvolvimento Econômico Local, colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Coordenou estudos sobre a contribuição da Cultura para o PIB do Estado do Rio de Janeiro (2002) e sobre as cadeias produtivas da Economia da Música (2005) e do Carnaval (2009). É autor do livro “O Maior Espetáculo da Terra – 30 anos do Sambódromo” (2015).