Por Cid Benjamin –

Em países como o Brasil, as grandes questões políticas quase sempre só entram em debate nas eleições para presidente. Aí, todo o país – dos seringueiros da Amazônia aos peões gaúchos – tomam conhecimento dos temas nacionais, como gosta de lembrar Milton Temer.

Já quando se trata da escolha dos parlamentares em geral, o eleitor é movido por questões locais e pelo fisiologismo. Não por acaso, a adoção do parlamentarismo tem sido proposta pelos conservadores, mais interessados em manter a disputa naquilo que o pensador italiano Antonio Gramsci chamava de pequena política, marcada por clientelismo e questões menores, para assim impedir mudanças mais de fundo.

Esse quadro aparece agora nas tentativas de emparedamento do governo Lula pela maioria do Congresso, encabeçada por parte do Centrão e seu capo maior – o presidente da Câmara dos Deputados, Artur Lira, sucessor do gângster Eduardo Cunha.

Pois bem, diante das chantagens a que Lula vem sendo submetido, existem essencialmente dois caminhos (ainda que não inteiramente excludentes).

Um primeiro é ceder e entregar mais e mais nacos do Poder Executivo e de dinheiro, por meio de emendas ao Orçamento, a gente que usa os cargos no parlamento para fazer “negócios” nada republicanos. As ameaças são explícitas: se as exigências não forem atendidas, o Congresso vai paralisar o governo. Às reivindicações fisiológicas se soma a defesa de uma política econômica neoliberal, que atenda aos interesses do sistema financeiro e não se atreva a enfrentar as obscenas desigualdades sociais.

O outro caminho é – sem prejuízo de eventuais acordos aqui e ali – levar o debate para a sociedade, não deixando que o enfrentamento político se dê principalmente dentro de quatro paredes. Foi o caminho adotado recentemente, até agora com sucesso, por Gustavo Petro, presidente da Colômbia, vítima de chantagens semelhantes. Mas, que ninguém se iluda: esse caminho exige um esforço de mobilização dos trabalhadores e significa conflitos, porque não faltarão acusações de “populismo” por parte da mídia conservadora e do poder econômico.

O presidente brasileiro tem procurado se equilibrar. Faz concessões – seja na entrega de espaços e recursos do aparelho de Estado, seja na política econômica, mas sem uma rendição absoluta, como a que parece ter feito o presidente do Chile, Gabriel Boric. Recentemente, aliás, Lula acertou ao não entregar o Ministério da Saúde a Lira. Foi uma decisão importante, porque esta é uma área fundamental para um governo que se proponha a recuperar os serviços públicos fundamentais e que foi dilapidada a partir do governo Michel Temer e, principalmente, nos quatro anos de Bolsonaro.

Há, claro, mediações, mas estes são os dois caminhos básicos.

O PT e seu entorno estão divididos em relação ao que fazer. Pela importância do partido – o mais influente no campo progressista, além de ser a legenda de Lula, a grande referência no campo popular – a posição que ele assuma tem implicações decisivas. Outras forças com perfil mais nítido, como o Psol, por exemplo, não contam com musculatura suficiente para influenciar de fato a conjuntura. E o movimento de massas, que seria decisivo para alterar esse quadro, hoje não tem força suficiente para uma intervenção decisiva.

As divergências no PT já aparecem à luz do dia e estão expostas em recente entrevista do vice-presidente do partido, Washington Quaquá, ao jornalista Chico Alves, da “Folha de S. Paulo” (13-6-2023). Nela, o dirigente petista considera insuficientes as concessões de Lula até agora. Afirma que no essencial as exigências de Lira, a quem classifica como “presidente do sindicato dos parlamentares, devem ser aceitas, diz que ele deve ser tratado como “parceiro” e propõe, de forma explícita, que o governo construa a “governabilidade” comprando o apoio dos parlamentares.

“Se o governo der R$ 50 milhões para cada deputado do União Brasil, 90% deles vão votar com a gente”, afirma Quaquá, sem meias palavras.

Quaquá descreve o presidente da Câmara como um “fenômeno político brasileiro”. E vai além nos elogios: “Lira tem sido muito justo com o Brasil. Eu digo isso porque ele deu estabilidade ao Bolsonaro, e quer dar estabilidade ao Lula, quer entregar a estabilidade ao país. […] Eu acho que o erro do governo hoje é tratar o Lira não como um parceiro da estabilidade, mas como um chantagista.”

Se esta fosse apenas a posição de um militante qualquer não mereceria maior atenção. Mas quem a defende é o vice-presidente nacional do PT, controla o partido no Rio de Janeiro e verbaliza posições de parcelas importantes de petistas.

Quaquá é, talvez, o mais afoito dos políticos do PT na defesa da aliança com Lira, o Centrão, a extrema-direita e alguns bolsonaristas. Chegou recentemente a pregar até mesmo uma aproximação com figuras caricaturais, como o ex-ministro Eduardo Pazuelo. Mas não está sozinho.

Em algumas votações na Câmara a bancada petista na Câmara se dividiu. Às vezes ao meio; em outras – num número menor de vezes, é verdade – até votando majoritariamente com Lira e o Centrão.

Ora, não é o caso de se ter ilusões sobre o governo Lula. Ele não caminhará no sentido de qualquer revolução socialista. Sequer fará reformas numa linha social-democratizante dentro do capitalismo. Seu maior papel foi barrar o nazifascismo e, uma vez eleito, desenvolver programas não propriamente de distribuição de renda mais profunda, mas de melhorias para as camadas mais pobres da população.

Isso não é pouco importante.

Mas claro que, mesmo como essas limitações e sem ameaçar a dominação de classe, há riscos. A burguesia brasileira é especialmente reacionária e intolerante. Resta torcer (e trabalhar) para que o governo não se desmoralize, o que seria o pior dos mundos, porque o impediria até mesmo de cumprir o papel de alijar a extrema-direita e o fascismo do cenário político.

Mas exigir que ele vá além de um “reformismo fraco” – para usar as palavras do antigo porta-voz de Lula, André Singer – é ter expectativas exageradas. Certamente ele não fará isso.

Para a esquerda, ficam então as perguntas: até onde pode ir este governo? Até onde se deve tensionar as coisas e tentar avanços, ainda que pequenos?

Claro que questões assim devem ser respondidas caso a caso.

Mas não seria bom manter a perspectiva de avanços, mesmo que como referência?

Mesmo que sejam apenas os avanços possíveis em cada momento?

Por outro lado, simplesmente render-se às chantagens de Lira, pintando-o quase como um “companheiro”, mesmo que seja um simples companheiro de percurso, não seria uma capitulação e um exagero?

Em outras palavras, tomando emprestada uma deliciosa expressão que o amigo Eliomar Coelho volta e meia repete, com seu carregado sotaque nordestino:

“Será que vamos entregar a marmelada na primeira gargalhada”?

CID BENJAMIN foi líder estudantil nos movimentos de 1968, participou da resistência armada à ditadura e foi dirigente do Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8). Libertado em troca do embaixador alemão, sequestrado pela guerrilha, passou quase dez anos no exílio. De volta ao Brasil em 1979, foi fundador e dirigente do PT e, depois, participou da criação do PSOL. É jornalista, professor e autor dos livros “Hélio Luz, um xerife de esquerda” (Relume Dumará, 1998), “Gracias a la vida” (José Olympio, 2014) e “Reflexões rebeldes” (José Olympio, 2016). Organizou, ainda, a coletânea “Meio século de 68 – Barricadas, história e política” (Mauad, 2018), juntamente com Felipe Demier.

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