Por Almir Aguiar –

No mês de maio há duas datas muito importantes para a comunidade negra e seus movimentos de organização de luta e emancipação.

O primeiro é o Dia do Trabalhador (1º de Maio). Nesta celebração lembramos de grandes conquistas adquiridas pelas lutas coletivas e sindicais dos trabalhadores e trabalhadoras. Mas, por outro lado, nesta data ainda pouco se fala na relevância de negros e negras para a construção do Brasil até os nossos dias, não apenas no trabalho operário nas áreas urbanas e dos trabalhadores rurais no campo, como em funções intelectuais acadêmicas, nos campos da história e da arquitetura, por exemplo.

A vida de Joaquim Pinto de Oliveira, que nasceu escravizado, mas conseguiu sua alforria por meio de seu trabalho arquitetônico é praticamente desconhecida e simplesmente ocultada das bancas escolares.

Uma de suas mais importantes realizações é a construção da torre e restauração da fachada da Matriz da Sé, em São Paulo.

Tebas, como passou a ser conhecido, é considerado por historiadores como o primeiro arquiteto preto de que se tem registro no Brasil.

Mesmo enfrentando circunstâncias desfavoráveis, pois pessoas pretas não tinham quaisquer oportunidades, ele entrou para a história da arquitetura brasileira. Sua habilidade manual foi fundamental para o processo de modernização da capital paulista.

Negros e Luta de Classes

Da mesma forma, quando se fala na organização do movimento operário para as lutas e conquistas de direitos e melhores condições de vida, de trabalho e de salários, está consagrado no imaginário social a importante participação de imigrantes europeus, especialmente italianos. É inegável a importância desses trabalhadores europeus para a luta de classe no Brasil e disseminação de ideais anarquistas, socialistas e revolucionários, a partir do fim do século XIX.

No entanto, é igualmente relevante a luta de negros e negras, primeiro contra a escravidão no Brasil, como nas rebeliões e formação dos quilombos em várias regiões do país e por melhores condições de trabalho e contra o racismo no mercado de trabalho, como é o caso de João Cândido, o Almirante Negro, que liderou a Revolta da Chibata, em 1910, movimento de marinheiros em oposição aos castigos e mau tratos impostos pela Marinha Brasileira aos trabalhadores subalternos e de baixa patente militar.

Num episódio recente, lamentavelmente, João Cândido teve o projeto propondo a sua inclusão no panteão de heróis da Pátria condenada pelo atual comandante da Marinha, almirante Marcos Sampaio Olsen, numa reação que só reafirma o racismo e o ressentimento das elites brasileiras com os movimentos de luta e de emancipação da população negra e da classe trabalhadora de um modo geral. Cabe a todos do movimento negro e a sociedade democrática defender a aprovação da proposta no Congresso Nacional.

Da mesma forma, muito antes dos movimentos grevistas organizados no Brasil por imigrantes italianos, o povo negro, formado por escravizados e alforriados, foi protagonista na greve negra de 1º de junho de 1857, na Bahia, a primeira mobilização de greve geral de um setor importante da economia urbana daquele período, o dos carregadores de produtos e todo o tipo de carga, conforme relata o historiador baiano João José Reis, em seu livro “Ganhadores: a greve geral de 1857 na Bahia”.

Como negar também, no Brasil moderno, a importância do poeta, escritor, artista plástico e professor universitário Abdias Nascimento, idealizador do Memorial Zumbi e do Movimento Negro Unificado (MNU), de grande relevância para a vida acadêmica brasileira. Ele, como o educador e antropólogo Darcy Ribeiro, acreditava que a pesquisa de campo precisa estar intrinsecamente ligada a prática política diária de transformação da realidade e superação dos impasses na sociedade e de luta de emancipação do povo brasileiro.

Luta pela igualdade

Sendo assim, o 1⁰ de Maio, em que celebramos o processo de organização social na luta de classes, possui estreita relação com o 13 de Maio, que não pode se estreitar apenas à data histórica da abolição da escravatura, a alforria tardia dos negros brasileiros escravizados no contexto da formação das reservas de mercafo do capitalismo moderno. Para nós, dos movimentos negros, o 13 de Maio está relacionado muito mais a data de celebração do Dia Nacional de Luta e Denúncia contra o Racismo. Isto porque a realidade hoje ainda é de um país que discrimina negros e negras em qualquer área econômica ou social em que forem feitas comparações em relação à população branca.

Mercado de trabalho desigual

O mercado de trabalho é a prova mais cabal de que a população negra continua colocada à margem das oportunidades na sociedade, como no mercado de trabalho, repercutindo no acesso à educação e nas condições de habilitação, de saúde, de trabalho e de vida.

Apesar de representar 56,1% da população em idade de trabalhar, os negros correspondiam a mais da metade dos desocupados (65,1%), segundo estudo feito pelo Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) feita com base nos dados de 2023, da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A taxa de desocupação dos negros era na ocasião de 9,5%, sendo 3,2 pontos percentuais acima da taxa dos não negros. No caso das mulheres negras, que acumulam as desigualdades de raça e de gênero, a taxa estava em 11,7%.

O Dieese apontou que a inserção das mulheres negras no mercado de trabalho é ainda mais difícil do que a de homens negros.

Violência contra negros

Essa marginalização da população negra é fruto de um racismo estrutural verificado na diferença colossal do tratamento dado pelo aparato e ações policiais em áreas nobres dos grandes centros urbanos em relação às favelas e periferias, de maioria negra.

De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil registrou mais de 6.420 mortes por agentes da polícia em 2022, o que equivale a 17 por dia, período em que o recrudescimento do aparato militar e da violência policial contra comunidades pobres virou uma política de estado, mas cujas práticas permanecem crescendo no país.

Os números mostram que a população mais vitimada é a dos jovens negros. Mais de 83% das pessoas que morreram em intervenções militares naquele período eram negras e 45% tinham entre 18 e 24 anos.

Este extermínio de negros pobres ocorre hoje de maneira inaceitável, especialmente em São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia.

Em 2023, foi publicado o Anuário Brasileiro de Segurança Publica, com dados de 2022, onde foram registradas 47.508 mortes violentas no país. O número vem diminuindo desde 2018 e é o menor em 12 anos, mas o ritmo de queda nos casos desacelerou: entre 2020 e 2021, a redução foi de 4%, e entre 2021 e 2022, de 2,4%.

A contagem inclui homicídios dolosos, latrocínios, lesão corporal seguida de morte e mortes decorrente de intervenção policial. Esse patamar é alarmante, pois, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), em estudo de 2020, com 2,7% da população global, o país tem cerca de um quinto dos homicídios no mundo.
Em 2022, entre as vítimas, 76,9% eram pessoas negras e 50,2% tinham entre 12 e 29 anos.

Desafios continuam

Apesar de avanços importantes com a retomada do campo popular e democrático na presidência da República, que reafirma as políticas de cotas e o debate pela reparação histórica, bem como os avanços no campo jurídico, como na decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que definiu que “abordagem policial e revista pessoal motivadas por raça, cor da pele, sexo, orientação sexual ou aparência física são ilegais”, há ainda muitos desafios pela frente para alcançarmos, de fato, a igualdade de oportunidades de raça, gênero e orientação sexual.

O Brasil historicamente tem uma divisão quase de castas delimitada claramente pela diferença racial entre brancos (Casa Grande) e negros (Senzala).

E sem superar esta lógica e o racismo estrutural impostos pelas classes dominantes, não poderemos alcançar a soberania nacional, que passa pela afirmação da identidade cultural da população negra, a emancipação popular, uma sociedade justa e uma nação avançada.

Nós, negros e negras, queremos não apenas recuperar a memória histórica de nossas comunidades, mas construir uma nova história neste país, o destino de um novo marco em nosso processo civilizatório, sem racismo e com oportunidades iguais para todos, homens e mulheres, negros, índios e brancos, extensivas também para a população LGBTQI+ e os portadores de deficiência.

Não há avanço na luta de classes e por um país melhor e nem emancipação popular se não acabarmos com o racismo e toda a forma de discriminação.

Nossa luta é por um Brasil digno e com oportunidades para todos e todas.

A palavra ‘abolição ‘ significa extinção, anulação, supressão.

E, se não derrotarmos ainda o racismo, a desigualdade, a ignorância e nem mesmo os casos de trabalho análogo ao escravo, podemos afirmar, sem medo, que não alcançamos a real e absoluta abolição.

ALMIR AGUIAR é Presidente do Sindicato dos Bancários do Município do Rio de Janeiro, secretário de Combate ao Racismo da Contraf-CUT e militante do Partido dos Trabalhadores-PT/Carioca

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