Por Flávia Oliveira –
Auxílio Brasil.
No pronunciamento em que anunciou o Auxílio Brasil como política social do candidato à reeleição Jair Bolsonaro, o ministro da Cidadania, João Roma, informou que no biênio 2020-2021 foram destinados R$ 359 bilhões ao Auxílio Emergencial. Expressou orgulho, em vez do necessário constrangimento. Num par de anos, o governo gastou o equivalente a uma década de Bolsa Família. Como resultado, colheu 19,1 milhões de pessoas em situação de fome e metade da população com algum nível de insegurança alimentar, segundo o levantamento Penssan; 27,7 milhões de brasileiros na pobreza, proporção (12,98%) maior do que a observada antes da pandemia (10,97%), informou a FGV Social. Conseguiu unir em desconfiança tanto especialistas em política social quanto devotos do liberalismo econômico, agora cientes do estelionato da campanha de 2018 — não por acaso o dólar bateu R$ 5,66.
Assim como não há dilema entre enfrentamento à Covid-19 e proteção da economia, política social e responsabilidade fiscal não são incompatíveis. Uma e outra não combinam é com a incompetência que grassa no governo Jair Bolsonaro, da Cidadania à Economia. Um bom programa de transferência tem foco, transparência, orçamento, meta. É tudo que o Bolsa Família construiu ao longo dos 18 anos, completados no mesmo 20 de outubro em que foi sepultado, tendo o Auxílio Brasil por epitáfio. Foi resultado de um encadeamento que começou com controle da inflação e formação do cadastro único na gestão tucana, nos anos 1990, e culminou com integração de programas e ganhos de escala nos governos petistas, a partir de 2002.
O Bolsa Família foi intensamente avaliado. E aprovado no Brasil e mundo afora. Reduziu pobreza e mortalidade infantil, aumentou frequência escolar das crianças, empoderou mães de família, tirou o Brasil do Mapa da Fome da ONU. Impulsionou a economia, porque é dinheiro que circula, consumo na veia. Com custo equivalente a 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB), cada R$ 1 depositado movimentou a atividade em R$ 1,78, calculou o economista Marcelo Neri, da FGV Social. Para efeito de comparação, benefícios previdenciários geram R$ 0,52 por real desembolsado.
Marcelo Reis Garcia, ex-secretário executivo do Ministério da Assistência Social e ex-secretário municipal de Assistência do Rio, tem mais de três décadas de experiência em gestão de programas sociais. Participou da montagem do cadastro único e da implantação do Bolsa Família, numa articulação entre União, estados e municípios que inexiste no governo Bolsonaro:
— Assisto ao nervosismo do mercado financeiro, com dólar disparando e Bolsa despencando por causa do novo programa. Posso dizer que há razão para essa desconfiança, porque o governo não está fazendo política social, mas distribuição de dinheiro com objetivo eleitoral. Não houve um estudo, nota técnica. Não conhecemos critérios, metodologia, resultados. Não houve discussão com governos estaduais e prefeituras num país com 5.570 municípios. É inédito.
João Roma anunciou reajuste de 20% nos benefícios a partir de novembro. O Bolsa Família não era reajustado desde 2015, numa defasagem que, estima Garcia, atinge 47%. O número de famílias atendidas, já em dezembro, aumentará de 14,7 milhões para 16,9 milhões, para dar fim à fila do novo programa. Além disso, o governo negocia com o Congresso recursos fora do teto de gastos para que, até o fim de 2022, nenhuma família receba menos de R$ 400. Chamou de benefício temporário, mas dá para chamar de vale-voto.
Graças à vacinação — sabotada pelo presidente da República, como evidenciaram as sessões e o relatório final da CPI da Covid —, o Brasil está saindo da crise sanitária. Afundou-se, porém, numa ambiente de instabilidade política, descontrole macroeconômico, escalada inflacionária e crise social aguda. O diagnóstico está nos indicadores de atividade e preços, mas também em evidências visíveis a olho nu. Há brasileiros revirando lixo em busca de comida e garimpando ossos e pelancas dentro de caminhões para aplacar a fome. Há organizações civis se virando em campanhas para doar cestas básicas, pratos de comida, botijões de gás, galões de água aos mais necessitados. E há um governo esbanjando incompetência e dinheiro público com política social e gestão macroeconômica que não são dignas desses nomes.
Nunca serão.
Publicado inicialmente em O Globo
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