Por Ana Carolina Bartolamei Ramos –

É brutal vivermos o atual cotidiano de exceção produzido por essa crise que não é só política e econômica, mas também uma crise de identidade e uma crise de palavra. Mas não sairemos dele sem enfrentarmos o fato de que uma democracia que não produz justiça e memória sobre a tirania terá sempre uma alma de exceção. Não é hora de pactuar novos apagamentos. Refundar a democracia no Brasil exige muito mais do que superar a crise política e a crise econômica. (…). E exige algo que durante 500 anos o Brasil não foi capaz de fazer: dar valor à vida humana. (Eliane Brum)

É fundamento comum às decisões criminais que decretam prisões preventivas que tais prisões serviriam a evitar o descrédito da justiça. Os argumentos para tal descrédito são vários, desde a reiteração criminosa, até mesmo o tipo penal, como o tráfico de drogas, que mesmo no caso de primários, teria uma consequência social grave que demandaria da justiça uma resposta rigorosa, para não ser descreditada, claro.

Nada mais claro a evidenciar a superlotação das prisões e a recusa de grande parte da magistratura nacional em se responsabilizar por empilhar corpos nos cárceres lotados, já que esse propósito serve a essa tal justiça que dizem não poder desacreditar.

Não é necessário que eu repita aqui tudo que já foi produzido acerca da tradição autoritária do poder judiciário brasileiro, até porque sabemos que é característica inerente à constituição social hierarquizada do Brasil. Um país constituído sobre a exploração e o extermínio dos corpos indígenas e negros, forjado a partir de fenômenos históricos nunca elaborados, como a escravidão em sua origem e a ditadura civil-militar, mas que insiste em reatualizar esse pacto de horrores, não poderia mesmo querer outra justiça, que não a do crédito.

Por isso quero destacar aqui o significante descrédito. Vê-se que o poder judiciário claramente não fez seu papel de garantidor do estado democrático de direito, função de barra que lhe cabia, na sustentação da constituição federal pós-ditadura civil-militar. Ao contrário, o poder judiciário é sim quem chancela a permanência das violações, são os juízes e as juízas do Brasil que ainda permitem que as práticas militares ditatoriais nunca tenham cessado de ocorrer para os corpos periféricos, negros, indígenas, marginalizados, durante os 30 anos de redemocratização.

Então essa palavra tem que ser levada a sério, se ela que expõe a naturalização constante por parte da magistratura nacional com relação aos abusos e ilegalidades que batem diariamente a sua porta, como no caso das prisões ilegais, que é o recorte que estou usando, mas que vai muito além, desde a violência dos despejos, o tratamento desumano com as pessoas em situação de rua, o extermínio da população indígena, a recusa em aderir à luta antimanicomial, que são outros exemplos claros.

Casara e Tiburi recentemente escreveram o livro “Um fascista no divã” e tal leitura me trouxe a questão de se não seria a hora de colocarmos o poder judiciário no divã. Se somos servidores públicos a serviço de uma justiça que não pode ser descreditada, nem quando é fascista, está faltando sim análise ao judiciário brasileiro.

Um julgador que se considera autoridade e assim se identifica com a justiça, com o poder que representa, somente consegue julgar a partir do que acredita ser o descrédito de si mesmo. E aí está todo o imbróglio.

Em um processo de análise é preciso enfrentar as representações fantasmáticas que sustentam a estrutura. Estaria o poder judiciário pronto para enfrentar os fantasmas dos corpos que carrega em sua constituição?

A questão então é o que aponta o tal significante descrédito que os operadores do direito insistem em usar, já que ao tomar abstratamente a justiça como algo que pudesse de fato ser descreditada, é justamente o pacto de apagamentos dos corpos matáveis ele revela.

A escolha não deveria ser tão difícil, à uma justiça que fecha os olhos às torturas e às mortes praticadas pela polícia, aos pés descalços que se apresentam diante de nós nas audiências de custódias, às cabeças raspadas, ao racismo estrutural, só caberia mesmo o seu total descrédito.

Por isso é urgente que façamos a elaboração e o enfrentamento dos fantasmas de um Estado que sequestra, tortura e executa sua população, mesmo em suposta democracia, porque somente assim será possível estabelecer no real uma diferença com a tirania.

E para isso é necessário que se questione de um poder que se organiza para a desumanização de uma parcela da população, mesmo quando jurou que atuaria para garantir a efetivação de seus direitos, escondendo-se na possiblidade de um descrédito da justiça que sequer parece conhecer o significado.

Gerenciar inconstitucionalidades para empilhar corpos em cárceres imundos, apertados e úmidos, é o descrédito, e não o contrário. Quanto mais nos escondermos em expressões vazias para nos recusarmos a enfrentar a nossa responsabilidade com o que se está vivenciando na sociedade brasileira contemporânea, mais corpos e mais órfãos precisarão ser contabilizados nesta fatura, que é também nossa, e muito nossa, como integrantes desse poder que se diz justiça.

ANA CAROLINA BARTOLAMEI RAMOS é juíza de direito substituta do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná com atuação na Vara de Execuções Penais, Medidas Alternativas, Corregedoria dos Presídios e Central de Audiências de Custódias de Curitiba. Mestre em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela PUC-PR. Membra da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e mãe do Raul.

A coluna ‘Tribuna dos Juízes Democratas’, dos juízes e juízas da AJD, é associada às colunas ‘Avesso do Direito’ do jornal Brasil de Fato e ‘Clausula Pétrea’ do site Justificando.

Publicado inicialmente no Justificando. Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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