Por João Batista Damasceno

O Brasil vive momento singular.

Em toda nossa história, mesmo os setores mais arcaicos sempre se posicionaram em favor da racionalidade, da Cultura, do progresso, da fraternidade e da ajuda humanitária aos desvalidos. Claro que tais discursos sempre estiveram permeados de boa dosagem de cinismo e hipocrisia. Mas, nenhum grupo jamais discursou em favor da barbárie, da eliminação física de seus semelhantes ou da incivilidade.

A elite política no Brasil sempre se mostrou comprometida com a Cultura e a Educação. Mesmo com formação limitada a pouca ilustração, ninguém jamais se orgulhou de ter opinião sobre assunto que não tinha conhecimento. Ao contrário, quem não tinha conhecimento buscava embasar sua opinião em ponto de vista alheio, pois o ancoramento em discurso de autoridade legitimada legitimava o interlocutor.

Durante o Império, os filhos da aristocracia eram bem formados. Embora vivessem do produto da escravidão, seus discursos eram em favor da liberdade. Ninguém se orgulhava da ignorância nem batia no peito para defender o indefensável. O escritor José de Alencar inseriu a questão indígena na literatura brasileira, a qual inaugurou. O Guarani e Iracema são obras clássicas deste período. Embora defendesse a escravidão o fazia escondido. As Cartas a Favor da Escravidão foram publicadas sob pseudônimo e os organizadores das várias versões de suas obras completas omitem estas Cartas, consideradas vergonhosas.

Da proclamação da República à Revolução de 1930 a elite política era formada por bacharéis e os presidentes tiveram a melhor formação dentre outros de nossa história, ainda que suas bases políticas fossem o Brasil arcaico da economia cafeeira. Sob o manto da hipocrisia e do jeitinho construímo-nos fundados no imaginário da terra abençoada por Deus, da cordialidade positiva e do país do futuro. Com a certeza na frente e a história na mão vivíamos com a arte de viver da fé, mesmo sem saber fé em que. Mas, o Brasil mudou.

Durante a ditadura empresarial-militar órgãos públicos militares e civis, foram transformados em centros de tortura, estupros, assassinatos, esquartejamentos e desaparecimentos de brasileiros considerados inimigos do regime. Mas ninguém discursava defendendo o que fazia nos porões. Os discursos eram em favor da democracia e da liberdade.

A redemocratização do país se operou sob o comando dos mesmos setores que haviam instituído o arbítrio e a truculência.

O empresariado industrial, comercial e de comunicação que haviam custeado a repressão vestiram nova roupagem e passaram a defender a democracia. Uma nova esquerda, festiva e conciliatória, foi incensada pelos artífices da transição para substituir a esquerda tradicional, que tinha bases fundadas nos interesses concretos do mundo do trabalho.

Os nacionalistas, principais atingidos durante a ditadura, foram chamados de jurássicos e deslegitimados. A ditadura editou lei isentando os seus agentes de responsabilidade pelas truculências que praticaram contra o povo brasileiro. Mesmo sem as ofensas físicas aos brasileiros, a ditadura já teria sido terrível, pois plantou as bases para a inviabilização do Brasil como país soberano. As atrocidades eram apenas o meio para atingimento deste fim, a serviço do capital estrangeiro.

Com a redemocratização convivemos tolerantemente com os que praticaram intolerância durante a ditadura empresarial-militar. E estamos pagando o preço. Por não terem sido responsabilizados acreditam que podem nos chantagear e que há a possibilidade de repetirem a história.

O Judiciário se negou a rever a lei da anistia e considerou legítima uma lei promulgada pelos algozes da liberdade em benefício próprio. Pelo Brasil, juízes continuaram a ser constrangidos pelo poder local, às vezes sob as vistas grossas dos tribunais que os haveriam de apoiar. Mas, a conciliação era considerada o melhor caminho e a um juiz acossado era oferecida uma remoção “para não gerar polêmica”.

Os assassinatos da juíza Patrícia Acioli e da vereadora Marielle Franco foram recados ao Judiciário e ao Legislativo do que são capazes os filhotes dos porões. Pelo Brasil a fora há outros casos. Essas milícias, elevadas ao poder nacional, hoje acreditam poder constranger o Supremo Tribunal Federal (STF). Em nome da conciliação e da cordialidade toleramos até hoje o intolerável. Mas, as instituições precisam se colocar em seus lugares e inadmitir sejam desrespeitadas, sob pena de ficarem impedidas de exercer seus papéis, imprescindíveis para as liberdades públicas.

Não podemos tolerar o intolerável.

JOÃO BATISTA DAMASCENO é Doutor em Ciência Política (UFF), Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Membro do Conselho Consultivo do Jornal Tribuna da Imprensa Livre; Membro e ex-coordenador da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro efetivo da ABI; Colunista do Jornal O Dia. (Fonte: O Dia)


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