Por Kakay –
“As leis existem, mas quem as executa?”
–Dante Alighieri, “Purgatório” de “A Divina Comédia”
O mundo, muitas vezes, é dividido entre a extrema irresponsabilidade das pessoas, ao não assumir os desmandos e os abusos, e uma pretensa responsabilidade, ao cobrar uma decisão racional e simplória em casos de excessiva gravidade. Com as pesadas condenações, no caso dos golpistas do 8 de Janeiro, muitos, especialmente a imensa maioria leiga, viajaram nas dúvidas. Afinal, felizmente, ninguém, salvo os profissionais da área jurídica, tem obrigação de entender a chatura do direito.
Um questionamento natural pegou corpo: como pode um ministro do Supremo condenar alguém a 18 anos e outro ministro, a 4 anos? Levantam essa falsa polêmica para criticar o trabalho do STF. A resposta é imensamente simples para quem entende, mas não é óbvia. Na verdade, é importante poder explicar que as penas se dão em razão dos crimes que são imputados.
Os réus dos atos extremistas foram denunciados, em regra, por 5 tipos penais:
• abolição violenta do Estado Democrático de Direito;
• golpe de Estado;
• associação criminosa armada;
• dano qualificado pela violência e grave ameaça;
• deterioração do patrimônio tombado.
Ou seja, delitos multitudinários conhecidos como crimes de multidão e que têm penalidades muito altas. O ministro relator, Alexandre de Moraes, ao optar por condená-los em todas as imputações, necessariamente, teria que estabelecer penas elevadas. Até porque as penas mínimas estipuladas para os crimes já se apresentavam altas.
É bom entender que o julgador, ao condenar um cidadão, deve seguir os limites da punição determinada pela legislação. O mínimo e o máximo. Nada é aplicado aleatoriamente. O ministro Alexandre, ao enquadrar o 1º réu do dia da infâmia, optou quase pelas penas básicas, mas que, somadas, ofereciam um patamar elevado –por determinação legal.
Eis as penas aplicadas na condenação em cada tipificação:
• abolição – 5 anos e 6 meses;
• golpe de Estado – 6 anos e 6 meses;
• associação criminosa – 2 anos;
• dano qualificado – 1 ano e 6 meses;
• deterioração do patrimônio tombado – 1 ano e 6 meses.
• total – 17 anos; sendo 15 anos e 6 meses de reclusão e 1 ano e 6 meses de detenção.
Já o ministro Nunes Marques optou por absolver os réus exatamente nos 3 delitos com penas maiores: golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e associação criminosa. Para ele, os atos foram como um “domingo no parque”, só que com danos materiais.
Essa é uma divergência natural entre ministros nos mais diversos julgamentos. Por isso é que, com frequência, há julgamentos nos Tribunais do Júri que terminam em 4 X 3, nos quais 4 julgadores absolvem o réu e 3 condenam. Essa é a regra do jogo. Não vamos fazer firula no julgamento desse que se anuncia o mais grave caso do Judiciário dos últimos tempos. Até pelo valor simbólico de nossa resistência democrática aos golpistas que intentaram contra o Estado Democrático de Direito.
Para uma pessoa com formação humanista, é sempre difícil comemorar uma prisão, ainda mais nos presídios medievais brasileiros e por um tempo tão alongado. Repito, é necessário que a sociedade faça uma reflexão sobre o que o Estado está fazendo com o sistema carcerário, que tem uma população de 800 mil presos vivendo em condições sub-humanas.
Bastava olharmos de frente o caos punitivista da política de drogas para aliviarmos consideravelmente essa tragédia brasileira. Mas, como a maioria dos presos por drogas são pretos, muito jovens, pobres e invisíveis sociais, essa é uma questão que nunca é levada a sério. A descriminalização das drogas atacaria de frente o traficante e tiraria dos presídios esses meninos que são transformados, na prisão, em mão de obra barata para o crime organizado.
Tenho refletido sobre a necessidade de aproveitarmos essa turbulência criada pela extrema direita, ao tentar destruir as bases democráticas com a instalação da ditadura, para encararmos, com seriedade, a desumanidade do sistema penitenciário. Aquele vizinho ou amigo de direita ou de extrema direita, geralmente desinformado e facilmente manipulado, que foi inoculado nos últimos 4 anos pelo verme do ódio e da violência bolsonarista, vai passar longos anos preso. Talvez essa turma agora olhe com olhares civilizatórios para a tragédia carcerária brasileira. Lembrando o poeta Mário Quintana, no poema “Emergência”.
“Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela
abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
para que possas profundamente respirar. Quem faz um poema salva um afogado.”
É certo, insisto, que o Judiciário está fazendo cumprir a Constituição e que, se estamos respirando ares democráticos, devemos, em boa parte, ao Supremo Tribunal Federal. Em caso digno de estudo acadêmico, e que será objeto de um olhar apurado pelo mundo todo, um golpe de Estado no Brasil foi vencido pela Constituição. Um enfrentamento desarmado que uniu os democratas e acordou parte da adormecida sociedade brasileira.
Na verdade, essa resistência foi se fortalecendo, aos poucos, ao longo dos 4 anos de barbárie. Cada um com sua parcela de participação democrática. Foram milhões de artigos, debates, silêncios eloquentes e indignados, manifestações públicas e demonstrações de que a civilização venceria o ódio e de que o fascismo iria ter que tirar suas garras afiadas da nossa população.
Agora, é hora de redobrarmos nossos trabalhos de acompanhamento desse julgamento histórico. Só estaremos realmente respondendo à altura da tentativa de fazer frente à abolição do Estado Democrático se a justiça se fizer também para os grandes financiadores e o grupo político e militar que apoiou, inspirou e fomentou a barbárie. E, claro, para o ex-presidente Bolsonaro e sua turma mais próxima. Inclusive com modulações de pena que sejam absolutamente proporcionais à participação de cada um.
Se um executor que depredou o plenário da Corte Suprema e que estava contribuindo para pôr em marcha o golpe militar foi condenado a 17 anos de reclusão, será correto e necessário que as punições de todos os golpistas desses grupos que organizaram e seriam os mais beneficiados sejam contempladas com a reprimenda proporcional à responsabilidade de cada um. Seria muito negativo, para a democracia e para o Judiciário, se a mão firme do Judiciário usasse a espada com as vendas tapando os olhos para os maiores responsáveis.
É hora de essa venda significar que não existe um olhar privilegiado e que é o espírito republicano que continuará a guiar esse julgamento histórico. Vamos continuar acompanhando e cobrando. Alertando-nos para “Alice do outro lado do espelho”, de Lewis Carroll:
“Não percebo”, disse Alice. “É terrivelmente confuso.” “É a consequência de se viver para trás”, disse a rainha afavelmente. “Ao princípio fica-se um pouco entontecido”. […] “Que espécie de coisas se lembra melhor?”, arriscou-se Alice a perguntar. “Oh, das coisas que aconteceram na semana que vem”, respondeu a Rainha num tom descuidado. “Por exemplo, agora”, continuou, pondo um grande adesivo no dedo enquanto falava, “estou a lembrar-me do mensageiro do rei. Está agora na prisão a ser castigado; e o julgamento não começa senão na próxima 4ª feira; e é evidente que o crime só virá no fim.”
ANTÔNIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO, o Kakay, tem 65 anos. Nasceu em Patos de Minas (MG) e cursou direito na UnB, em Brasília. É advogado criminal e já defendeu 4 ex-presidentes da República, 80 governadores, dezenas de congressistas e ministros de Estado. Além de grandes empreiteiras e banqueiros.
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