Redação

A regulamentação da atividade de lobista no Brasil garantiria mais transparência à administração pública e faria com que decisões importantes, como o leilão de banda de tecnologia 5G, fossem pautadas por questões técnicas.

Essa é a opinião do advogado Conrado Gontijo, criminalista, doutor em Direito Penal e Econômico pela USP (Universidade de São Paulo), que lançou recentemente o livro “Lobby, estudo comparado e necessidade de regulamentação do instituto no ordenamento jurídico brasileiro” (editora Marcial Pons Brasil).

Em entrevista à ConJur, explicou que a regulamentação do lobby aumentaria o peso técnico em questões como a da tecnologia 5G. “Hoje, se eu quisesse saber como o lobby tem se movimentado sobre essa questão, teria muita dificuldade. Não se tem claro quais são os parlamentares que estão na linha de frente desse tema, que tipo de visita estão recebendo e o material que recebem”, explica.

Gontijo também defende a importância da atividade para fornecer a agentes públicos informação qualificada sobre temas que eles não conhecem, como especificidades das vacinas contra a Covid-19.

Por fim, o advogado sustenta que a atividade foi demonizada no Brasil nos últimos anos por conta de operações espetaculosas do Ministério Público. “O Ministério Público tratou como se fosse corrupção eventos de lobby banais, pelo menos de acordo com o que estava provado em algumas investigações”, explica.

Leia a entrevista:

ConJur — O senhor defende a imediata regulamentação do lobby no Brasil. Por quê?
Conrado Gontijo — Primeiro porque o lobby é uma realidade em qualquer sociedade que se pretenda democrática. Ele é absolutamente legítimo e amparado pela Constituição, pela cláusula que garante o direito de petição. Qualquer interessado em temas que sejam de alguma forma atrelados a decisões estatais pode pleitear ao Estado decisões que sejam mais condizentes ou que satisfaçam de maneira mais efetiva os seus direitos.

Então lobby é uma realidade. E a falta de regulamentação na verdade traz uma zona de pouca transparência em relação à forma como essa atuação do lobista acontece, que só traz prejuízos. Na verdade, a regulamentação só será possível com a criação de canais de registro das informações, das interações dos lobistas com os funcionários públicos etc. Isso é importante para fins de transparência, inclusive para evitar que determinadas condutas, que em princípio possam ser legítimas, caiam no campo das ilegalidades.

O lobby é fundamental por isso. Garante à sociedade a possibilidade de conhecer quais são os critérios e como as decisões são tomadas no âmbito público.

Outro fator que eu acho fundamental, que também aparece em todos os estudos e que justifica a regulamentação do lobby como um todo, é que o Estado acabou assumindo uma série de competências normativas muito especificas, muito técnicas, que os seus servidores não conseguem atender.

Atualmente temos discussões no campo médico sobre qual vacina é a melhor ou que teste funciona. São discussões de natureza técnica, e o recebimento de informações de esclarecimento, de subsídios por parte da iniciativa privada, acaba sendo essencial para que o Estado, não só na área médica, mas na área de tecnologia, armamento, mineração, desse universo todo que o estado hoje regula. Esse lobby existe, esse fluxo de envio de informação do privado para o público existe, só que ele é invisível. A gente não sabe exatamente como ele se dá.

ConJur — Como o lobby funciona atualmente sem legislação?
Gontijo — O que eu chamo de lobby é diferente da corrupção. É diferente de interesses ilegítimos. Só que não sabemos, por exemplo, no tema das vacinas, qual que vai ser comprada, qual não vai ser. E não sabe o tipo de tentativa, de interferência que as indústrias desse setor estão fazendo junto ao governo. Que tipo de informação, dossiê, documento que eles disponibilizam para Anvisa. Quantas reuniões foram feitas com os representantes dessas empresas para que eles defendessem os seus pontos de vista. Tudo isso acontece hoje.

Então o que acaba acontecendo é uma falta de transparência mesmo. O lobby hoje acontece quase que de forma informal.

Você pede para agendar um horário com um parlamentar, ele te recebe no gabinete. Eventualmente isso entra num contexto de lobby. E se alguém fosse prejudicado por essa decisão que você foi defender, quiser saber que tipo de interferência esse parlamentar sofreu, dificilmente tem condições de saber.

ConJur — Existe algum modelo de regulamentação de lobby que o senhor defenda ou considere adequado ao país?
Contijo — Nos últimos dez anos foram criadas mais regulamentações de lobby do que haviam sido criadas até então. Existe uma crescente muito clara no sentido de os estados incorporarem nos seus ordenamentos políticos a regulamentação do lobby. Na América Latina, salvo engano, o México e Chile têm regulamentação já estabelecida, e os referenciais em relação às regulamentações mudam sensivelmente.

Nos Estados Unidos, por exemplo, que é o país que tem mais tradição na regulamentação do lobby, existem normas para tentar criar mecanismos de controle das interações dos lobistas e dos agentes públicos.

O nível de exigência em relação às informações do sistema norte-americano é altíssimo. O lobista tem que discriminar, por exemplo, qual foi o custo de passagem aérea que ele teve para visitar o político ou a agência reguladora.

Então é uma realidade muito diferente da nossa. E o nível de exigência é tão grande que me parece que o que tem lá não funcionaria aqui. Nós não teríamos condição de provavelmente fazer os sistemas de controle funcionarem se exigíssemos tantas informações.

Em outros países, o nível de exigência é menor. Exige-se, por exemplo, que haja um cadastramento do lobista perante o órgão específico autônomo independente para fazer a fiscalização da atuação do lobista. Esse cadastro precisa ser renovado periodicamente. O lobista tem até que fazer relatórios dos contatos que ele teve com os funcionários públicos, mas menos detalhados.

ConJur — O lobby legalizado garantiria uma escolha mais técnica e menos política em temas como o futuro leilão da tecnologia 5G no país?
Gontijo — A regulamentação do lobby em um tema como esse tornaria mais transparente as discussões. Haveria mais abertura para que fossem compreendidas as razões que levem uma decisão ou a outra.

Hoje, se eu quisesse saber como o lobby tem se movimentado sobre essa questão, teria muita dificuldade. Não se tem claro quais são os parlamentares que estão na linha de frente desse tema. Que tipo de visita estão recebendo, o material que estão recebendo.

O lobby regularizado criaria condições para que a decisão final fosse ancorada em motivos técnicos. Quando existe pouca transparência, o peso técnico fica menor.

ConJur — O termo lobby no Brasil é usualmente relacionado a práticas criminosas. Em que a regulamentação do lobby poderia ajudar nesse contexto que nós vivemos de cristalizar as instituições do país? Se o lobby fosse regulamentado, o nosso desgaste seria menor no contexto de operações como a “lava jato”?
Gontijo – Essa confusão que existe entre lobby e corrupção, que é muito comum por aqui, não é uma coisa da nossa realidade apenas. Aparece em outros países. A regulamentação do lobby por si não é fator que vai resolver esse problema, mas me parece, por exemplo, que se você conseguir trazer para a claridade quem são os lobistas, o que eles fizeram, com quem interagiram, se determinado político votou nessa direção porque na semana anterior recebeu a visita do fulano de tal e o estimulou a tomar essa decisão. Acho que isso gera um constrangimento típico da transparência.

Hoje em dia o lobby e a corrupção nas denúncias são a mesma coisa. O lobby e o tráfico de influência, advocacia administrativa, exploração de prestígio nas denúncias são tratados como coisas idênticas..

O lobista não quer do funcionário público algo que ele não possa oferecer, não possa decidir. Quer na verdade exercer persuasão para que a decisão legal do servidor seja uma que satisfaça de forma mais ampla seus interesses.

ConJur – O senhor acredita que operações espetaculosas do Ministério Público, com nome fantasia, colaboram para demonização da atividade?
Gontijo — Certamente. Esses nomes que as operações têm são sempre chamativos. Não são criados para identificar os casos internamente. Nos fóruns, esses processos têm um número, e é por ele que nós identificamos quando vamos peticionar, quando a gente vai pedir informação no balcão, quando vai ser chamado à uma sustentação oral no tribunal. Esses nomes que a autoridade policial dá aqui, que o Ministério Público Federal dá são marcas para uma comunicação com o público. É para chamar atenção, gerar um interesse. É uma forma de lobby, uma forma de querer chamar a população a conhecer aquele assunto, quando na verdade o processo penal tem uma natureza iminentemente técnica.

Acho que esse tipo de movimento, de estímulo ao ouvir as vozes das ruas e tal, só fez mal para nós nos últimos anos. O processo penal perdeu de forma grave padrões referenciais essenciais que vinham sendo construídos e que são fundamentais para que a gente possa dizer que vive num estado democrático.

ConJur — Qual o papel da imprensa nesse aspecto de divulgar uma imagem errada da atividade?
Gontijo – A imprensa na verdade tem um papel fundamental. E até quando a gente vai fazer resgates históricos para saber quando surgiu essa confusão entre lobby e corrupção, práticas ilícitas no âmbito da administração pública.

O que se verifica é que essa confusão surge muito a partir da forma como os casos de corrupção foram explorados nas reportagens. Em muitos escândalos no qual se verificaram casos de corrupção dos Estados Unidos, por exemplo, isso coisa de 50, 60, 70 anos atrás, o que se verificava é que a narrativa do corrupto partia da ideia de que na verdade ele seria um lobista. E com isso, essa associação entre lobby e corrupção foi sendo feita lá e chegou até nós aqui.

O trabalho da imprensa é importante no sentido de orientar, esclarecer a população a respeito da importância que o lobby tem, para que a população possa entender que é uma ferramenta que precisa estar, embora hoje eu não acho que esteja, à disposição de todos. E a regulamentação eventualmente vai abrir maior espaço para que as pessoas de hoje, que são completamente alijadas da possibilidade de exercer essa influência, de fazer esses pleitos ao estado. Vai ampliar a possibilidade de que isso aconteça.

O lobby não é a ferramenta de bandido, corrupto, de obter uma decisão pública ilegal. É uma ferramenta da sociedade buscar junto à administração pública uma solução que melhor se adeque aos seus interesses.

ConJur — Recentemente o PGR, Augusto Aras, defendeu a regulamentação do lobby em lei específica. O Ministério Público como entidade vai ter que enfrentar essa discussão em algum momento?
Contijo — O Ministério Público vai ter que enfrentar. Me parece que o procurador Aras tem tomado uma postura muito firme em relação a alguns aspectos de gestões passadas, e abrir a possibilidade de uma discussão sobre a regulamentação do lobby é um desses movimentos importantes que ele fez.

O Ministério Público tratou como se fosse corrupção eventos de lobby banais, pelo menos de acordo com o que estava provado em algumas investigações. O Aras tem sofrido muita resistência interna para fazer avançar que são essenciais para o aprimoramento do MP.

Hoje tenho a impressão de que é muito mais difundida a ideia de que o lobby precisa ser disciplinado, regulamentado, do que a ideia de que deve ser proibido. Ainda que exista algum tipo de resistência, o caminho me parece mais aberto à regulamentação, até porque essa é a tendência mundial, em termos de transparência. Os países mais avançados têm regulamentação sobre isso. Então me parece ser mais fácil caminhar no sentido da regulamentação.

E é importante mencionar, tem 30 anos ou mais, que existem projetos de lei tramitando no Congresso que tratam da matéria. É evidente que são bastante deficientes, precisam de reformulações, mas essa discussão vem sendo feita já há muito tempo.

Essas operações de combate à corrupção que vêm sendo desenvolvidas nos últimos anos intensificaram a necessidade dessa diferenciação porque, antes de tudo, a regulamentação vai ser um instrumento de transparência. Ainda que existam resistências, o caminho para a regulamentação está de alguma forma bem encaminhado.

ConJur — Em caso de regulamentação do lobby, quem seria responsável por fiscalizar eventuais abusos?
Gontijo — Essa é uma discussão que em cada lugar do mundo é feita de uma forma. Nos EUA, por exemplo, o Congresso tem lá um órgão que ele criou e que faz a verificação. No Canadá tem algo parecido com uma “CVM” [Comissão de Valores Imobiliários, no Brasil], uma agência reguladora desse ambiente.

O ideal seria ter um órgão independente que pudesse ter revisores técnicos para fazer a verificação disso. Existem no mundo, em geral, nos regimes mais sofisticados, esse órgão. Acho que por aqui não poderia ser diferente. Teria que ser definido na lei, mas a impressão que eu tenho é que a fiscalização do processo tem que ser pública. Em alguns países, o resultado dos procedimentos administrativos são até divulgados na imprensa, como forma de punição.

De alguma maneira, a fiscalização do lobby vai atingir o funcionário público de menor graduação. Mas ela vai também alcançar os patamares de poder mais elevados do país. Para que um órgão funcione num contexto desse, tem que ser um órgão técnico independente. E seria esse o órgão incumbido de receber o cadastramento, de fazer a análise dos relatórios periódicos que os lobistas enviarem, de instaurar os procedimentos administrativos garantindo os direitos de ampla defesa, para que sansões eventuais sejam aplicadas.


Fonte: ConJur, por Rafa Santos