Por Ruth de Aquino

Estavam prestes a ser triturados e jogados no lixo 50 fatias de queijo, 14 linguiças calabresa, nove presuntos e cinco embalagens de bacon. Ali, numa área restrita para comida a ser descartada de um supermercado em Uruguaiana, dois homens furtaram os alimentos vencidos, no valor total de R$ 50, e fugiram. Foram presos. E absolvidos no primeiro julgamento.

Mas o promotor Luiz Antônio Barbará Dias, do Ministério Público (MP), recorreu da decisão. E pediu a condenação dos dois réus. “Apresentam condutas anteriores voltadas à prática de ilícitos, como um roubo”. O sobrenome do promotor deveria ser Carcará, eu me lembrei da letra de João do Vale, na voz de Maria Bethânia. Carcará/ É um pássaro malvado/ Tem o bico volteado que nem gavião/ Carcará/ Num vai morrer de fome/ Carcará/ Pega, mata e come.

A humanidade e o equilíbrio deveriam ser qualidades inerentes ao cargo. Respeito o Direito. É preciso estudar muito para entrar no Ministério Público como promotor. O salário, segundo o Portal da Transparência, é acima de R$ 33 mil. As fotos favoritas de Barbará, em seu perfil do Facebook, são na Costa Amalfitana, na Itália. Há três anos, esse promotor chamou advogados de “defensores de criminosos”. Foi repudiado pela OAB. Como dorme Barbará?

Um defensor público do Rio Grande do Sul, Marco Antônio Kaufmann, acaba de contestar o promotor. “Tristes tempos em que lixo (alimento vencido) tem valor econômico. Nesse contexto, se a mera leitura da ocorrência policial não for suficiente, nada mais importa dizer”. Tristes tempos de falta de compaixão. Kaufmann insiste agora na absolvição definitiva da dupla.

No julgamento inicial que inocentou os dois homens, o juiz André Atalla alegou “insignificância”. Furtar por fome mercadorias destinadas ao lixo não pode ser crime, é insignificante. Não pode dar prisão.

Vinte milhões de brasileiros passam fome e mais de 125 milhões sofrem de “insegurança alimentar”, medo de não ter o que comer. Se almoçarem, não jantam. “A gente reza a Deus para ver se consegue alguma coisa no outro dia”. Essa é a oração das famílias. “Vendi as panelas para comprar pão e pé de galinha”. Esse é o desespero da mãe.

Precisamos doar alimentos em vez de punir quem furta mercadoria vencida. Miséria não pode ser apenas moeda eleitoral. O Brasil tinha saído do Mapa da Fome da ONU em 2014. Logo que assumiu, Bolsonaro acabou com o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).

“Nunca vimos tanta gente com fome”, diz filho de Betinho, Daniel de Souza, da Ação da Cidadania. “A fome não resolve com uma picada da vacina. Todos seremos vacinados, mas ela vai continuar. A fome tem pressa. Daí vem nosso apelo aos empresários para que doem”. O apelo também é dirigido a mim, a você.

Desperdiçar comida, jogar fora alimentos como tantos de nós ainda fazemos, é um crime muito maior quando o povo disputa ossos. Por ano, são desperdiçados por pessoa no Brasil 60 quilos de alimentos. Você joga comida fora? Deixa estragar na geladeira?

As cenas recentes de caminhão com ossos em disputa no bairro carioca da Glória, clicadas pelo fotógrafo Domingos Peixoto, chocaram o país. Os ossos e pelancas tinham sido descartados por açougues e mercados para envio a fábricas de sabão e ração de cachorro.

Confio em que os dois homens de Uruguaiana serão absolvidos. Não me conformo com uma Justiça que arrasta esse processo há mais de dois anos, gastando dinheiro público à toa. Isso sim é crime.

Furtar lixo para comer é desespero.

RUTH DE AQUINO nasceu no Rio. Jornalista desde 1974. Mestrado em Londres sobre Ética na imprensa. Foi repórter, editora, diretora de redação, correspondente em Londres e Paris. Escreve sobre o ser humano e suas contradições.

Publicado inicialmente em O Globo. Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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