Redação –
Para proteger as identidades, os autores usavam toucas ninjas. Ainda assim, foram condenados quase inteiramente com base em um reconhecimento feito mais de três meses depois, em 12 de junho de 2018. Segundo os autos, a identificação foi possível porque, durante o delito, as vítimas conseguiram observar “a região dos olhos” dos assaltantes.
No processo de reconhecimento, três dos implicados — Alex Sandro Ferreira da Silva Catuaba, Tiago Campos Terkeli e Victor Hugo Campos Terkeli — foram colocados em fileira com dois homens mais velhos, que não apresentam semelhança física com os acusados, o que afronta recomendações legais do artigo 226, inciso II, do Código de Processo Penal.
No caso de Catuaba, somente a magistrada que teve a casa invadida afirmou ter o reconhecido. As outras quatro vítimas disseram não poder identificá-lo como autor justamente por só terem visto os olhos dos assaltantes.
A decisão afirma que o fato dos homens terem sido reconhecidos pelos olhos não enfraquece o processo, uma vez que a identificação foi ratificada em juízo, não restando “qualquer dúvida acerca de serem os réus os autores dos crimes”.
Segundo Jane, embora a vítima não tenha visto “totalmente o rosto dos réus no momento do delito, não tem condão de enfraquecer a prova trazida ao bojo dos autos, porquanto as vítimas os reconheceram [além dos olhos] pela compleição física e pela voz”.
“Tal reconhecimento, por analogia, pode ser usado como meio de prova e, corroborado por outros elementos de convicção, serve para embasar o édito condenatório”, diz.
Sobre o reconhecimento não ter seguido as recomendações do Código de Processo Penal, Jane afirma que “a circunstância da pessoa que se pretende reconhecer não ser colocada junto a outras, que com ela tiverem qualquer semelhança, não é reputada essencial, embora aconselhável”.
Catuaba foi condenado a 17 anos, 11 meses e 18 dias de prisão.
Catuaba
Na data do crime — 1º de março de 2018, uma quinta-feira — , Catuaba, 39 anos, trabalhava normalmente como estoquista em uma loja de equipamentos automotivos em Moema, na zona sul de São Paulo.
Segundo a folha de ponto, ele deixou o trabalho às 19h. De lá, segundo o acusado, pegou carona com Lucas Fonseca, seu colega de firma, até o terminal João Dias, também na zona sul.
Por ter sido assinada manualmente somente com o horário, a folha não foi considerada uma evidência contundente de que Catuaba deixou o trabalho exatamente às 19h.
“Por volta de 19h40, eu avisei minha esposa que estava perto do João Dias. Eu só passava na estação quando levava o Catuaba. Então tenho certeza que deixei ele lá”, afirma Lucas.
Ele diz se lembrar do dia, porque na ocasião Catuaba estava responsável por entregar os novos uniformes da loja aos colegas.
“Além disso, em 1º de março, eu envelopei um carro azul. Foi o primeiro daquela cor que eu peguei e eu fiquei infernizando o Catuaba pra ele comprar o adesivo. Está tudo aqui registrado e foi informado”, afirma o colega.
O depoimento foi colhido para sustentar que Catuaba não poderia ter saído do terminal João Dias por volta das 19h40 e chegado a Jundiaí às 20h30, horário em que ocorreu o assalto.
Caxambu fica a cerca de 80 km de distância do terminal, a depender da rota. O trajeto leva aproximadamente 1h10min de carro e mais de 3 horas se for feito por transporte público.
A esposa, irmã e cunhado de Catuaba afirmam que ele sempre chegava em casa por volta das 20h30.
A defesa de Catuaba, porém, não conseguiu imagens para comprovar que ele foi deixado no terminal às 19h40. As imagens da loja em que ele trabalhava também eram apagadas no final do mês. Então, segundo a defesa, não há gravação do dia 1º de março.
Ligações telefônicas
Os documentos relativos ao caso não deixam claro em nenhum momento como a apuração levou ao nome de Catuaba. A investigação inicial foi feita por João Paulo Alves Teixeira, da Polícia Civil de São Paulo, e analisou chamadas telefônicas feitas para localidades próximas às casas que foram assaltadas em Jundiaí.
As ligações que “chamaram a atenção” foram aquelas realizadas de municípios distantes do local assaltado. Assim, a polícia localizou chamadas realizadas pelos pais de Tiago e Victor a partir de Taboão da Serra, na Grande São Paulo, para Jundiaí.
Para além do reconhecimento pelos olhos, a condenação dos dois irmãos também apresenta indícios de irregularidades, conforme relatado em uma reportagem da Ponte Jornalismo.
O fato de Catuaba ter sido apontado como suspeito chama a atenção novamente porque nenhuma das ligações interceptadas apontam para números ligados a ele, aos seus familiares ou conhecidos.
O relatório diz apenas que Catuaba “já foi preso como comparsa de Tiago”. No entanto, os dois nunca foram detidos antes.
“Não consta no relatório, em nenhum momento, menção ao nome do Catuaba. Eu pedi esclarecimentos sobre isso, mas não foram concedidos, de modo que nem consigo te explicar como chegaram ao nome dele. Nenhum dos números mencionados tem relação com o meu cliente. E ele nunca foi preso. Não faz sentido dizer que ele virou comparsa do Tiago, sendo que nenhum deles foi preso anteriormente”, afirma o advogado criminalista Matheus William Acacio Gomes, do escritório MW Advocacia & Assessoria Jurídica, responsável pela defesa de Catuaba.
Ele conta que o estoquista foi condenado em 2017 por falsidade ideológica. Na ocasião, ele passou uma multa de trânsito em seu nome para a CNH de um terceiro. No entanto, não houve detenção, tendo Catuaba apenas prestado serviço comunitário.
“Essa alegação simplesmente não se sustenta. Não há nenhuma evidência de que Catuaba e Tiago se conhecessem. Mesmo com pedidos para que essa ligação fosse explicada, os investigadores nunca informaram como chegaram a essa conclusão”, diz.
Outro ponto que o advogado e os familiares ressaltam é o de que em nenhum momento as vítimas afirmaram que um dos autores usa óculos. Catuaba tem miopia e astigmatismo, e não usar o item lhe dava dores de cabeça, dizem.
O advogado protocolou um recurso no Tribunal de Justiça de São Paulo em julho. Ainda não há data para que o julgamento ocorra. Nesta quarta-feira (11/12) também foi protocolado um Habeas Corpus no Superior Tribunal de Justiça.
“Devido à falta de fundamentação da manutenção da prisão preventiva na sentença condenatória, impetramos um HC para que o Catuaba aguarde o julgamento do recurso de apelação em liberdade, tendo em visto que no atual entendimento do Supremo Tribunal Federal ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado”, diz Matheus.
Inconsistências
Especialistas ouvidos pela ConJur afirmaram que o caso possui uma série de irregularidades. A mais patente delas, o fato dos acusados terem sido reconhecidos “pela região dos olhos” três meses após o crime ocorrer.
Para Daniella Meggiolaro, presidente da Comissão de Direito Penal da Ordem dos Advogados do Brasil, seção São Paulo, e vice-presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), o reconhecimento no Brasil “é um procedimento extremamente arcaico e muito pouco confiável”.
“O caso em questão é um exemplo típico da fragilidade da prova produzida na fase policial, referendada posteriormente e sem critério pelo Ministério Público e pelo Judiciário. Está mais do que na hora de repensarmos o uso do reconhecimento como prova suficiente para condenação, pois os erros judiciários provenientes desse método são recorrentes e trazem consequências indeléveis a um inocente”, diz.
Ela também considera que houve inversão do valor da prova. “O conjunto probatório — ou seja, o reconhecimento pelos olhos, compleição física e voz —, ainda que frágil, serve para condenar, mas as provas testemunhais de que ele estava longe do local dos fatos não servem para absolver?”, questiona.
Priscila Pamela dos Santos, advogada criminal e presidente da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB-SP, afirma que o modo como ocorreu o reconhecimento “afronta o Código de Processo Penal”.
“Essa prova não é o bastante e isso é fato. Olhar e dizer que reconhece é a prova mais frágil que existe no mundo. Reconhecer nessa condição cria falsas memórias. É insuficiente até quando observados outros requisitos.”
De acordo com ela, em casos onde “ocorre reconhecimento fotográfico prévio, é ainda pior”. “A pessoa fica praticamente sem chances. Todo reconhecimento pessoal é uma prova bastante discutível, porque a condição emocional que você fica submetido naquele momento é muito difícil.”
Andréa Cristina D’Angelo, diretora do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), também ressalta a criação de falsas memórias.
“Equivocam-se aqueles que entendem que a memória do ser humano funciona como uma máquina fotográfica e suas lembranças podem ser acionadas a qualquer momento sem que haja qualquer interferência quer de ordem externa ou interna. Isso não acontece”, diz.
Ainda de acordo com ela, “se o reconhecimento pessoal já deve ser recebido com ressalva, quiçá o reconhecimento dos ‘olhos’, compleição física e de voz de uma pessoa; salvo se houver alguma característica muito evidente que não seja comum em outras pessoas, o que é muito difícil”.
Outro lado
A reportagem pediu esclarecimentos ao Ministério Público do Estado de São Paulo e a Secretaria de Segurança Pública sobre como a investigação chegou ao nome de Catuaba e sobre os acusados terem sido reconhecidos pelos olhos.
O MP-SP não respondeu às perguntas, enviando somente o parecer feito pelo órgão quando o advogado do caso apelou ao TJ-SP.
Não houve resposta da SSP até a publicação desta reportagem.
0004067-27.2018.8.26.0309
Fonte: ConJur, por Tiago Angelo
MAZOLA
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