Por Ricardo Cravo Albin

“Uma árvore que ilumina uma avenida com seu verde e sua sombra, ao ser abatida é crime contra um ponto referencial da cidade. Tanto quanto destruir-se um casarão colonial que fixou seu espaço na paisagem por mais de século.” (Lucio Costa)

Tom Jobim era defensor da preservação do Rio, de sua natureza e dos sentimentos mais altos de seu povo. Acabo de estudar sua vida um pouco mais, encargo que sempre me alegra o espírito. E me deparei com esta frase: “Esta cidade é um lugar paradisíaco, com essas montanhas, matas, esse céu azul lavado. Mas meu amigo Oscar Niemayer estava com razão quando me disse que uma cidade só é cidade até 800 mil habitantes”. Outra frase antológica do querido Tom é um clássico de sofisticada observação: “A diferença entre Nova York e o Rio é que lá é bom, mas é uma merda. Aqui é uma merda, mas é bom.”

Frank Sinatra e Tom Jobim durante a gravação do primeiro disco da dupla, “Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim”, em 1967

Ficávamos horas a fio a bater papo ao telefone quando administradores bisonhos destruíam árvores, aumentavam gabaritos, ou punham abaixo antigos prédios históricos. Sem qualquer consideração e com despudor aos pontos de referência e de sedimentação.

Cito exatamente meu saudosíssimo amigo porque empreendi uma campanha pública quando sua morte acabrunhou a cidade, dando margem a administradores sugerirem ideias mil a fim de homenagear memória de apreço unanime. E logo começaram pelo mais fácil e imediato, substituir nomes instalados de logradouros públicos, o primeiro dos quais foi a Rua Visconde de Pirajá. Fui à luta e bombardeei a ideia, revisitando o momento histórico do começo de Ipanema quando (e por quê) o Visconde foi lá instalado. A que não faltaram sua consagração e bem querência pública à época e o desejo do novo bairro em reverenciá-lo.

Que imoralidade seria essa, a de desloca-lo de seu pedestal apenas pela fugacidade do passar do tempo e por ele não mais brilhar por estar morto há tantas décadas? Onde já se viu ousadia tamanha, esquecer os notáveis de seu tempo apenas pelo fato de não estarem presentes? O argumento fez recuar os novidadeiros. Por uma ou duas semanas… outra ideia de jerico logo aflorou para tentar derrubar a Vieira Souto de sua avenida faceando o mar onde – oh quanta propriedade, diziam os desmiolados – banhava-se a garota de Ipanema.

Helô Pinheiro – A Garota de Ipanema

Pesquisei quem foi Vieira Souto, usei os mesmos argumentos de que ilustres e históricos não devem ser apeados de suas glórias e de que, sobretudo eles, os pontos de referência não podem ser removidos porque são objeto de afago e localização dos citadinos. Ademais, as grandes metrópoles sempre respeitaram isso, porque respeitam suas memórias, sinônimo de seus pontos referenciais. – Chega de destruir o que ainda resta de referência ao Rio, tão assaltado pela indigência cultural de seus dirigentes e vereadores.

Quanto ao Tom, acabei eu mesmo por indicar o Aeroporto do Galeão, porta principal do Rio, para abrigar o nome do maestro soberano, que tanto e tão bem cantou a cidade de São Sebastião. Por que? Porque ele substituiria apenas um galeão. Não um Santos Dumont…

Aeroporto Internacional Tom Jobim, anteriormente chamado Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, também conhecido como Aeroporto do Galeão

A dignidade do Rio há que estar sempre presente em nossos corações e ações. Desse modo quando morrem brasileiros notáveis, eu começo a ficar de cabelo em pé porque logo surgem os bajuladores de ocasião a quererem tirar casquinha dos nomes de mortos incensados. Quando, aliás, fiz campanha contra a utilização do nome de Tom para destruir as memórias do Pirajá ou do médico benemérito Vieira Souto, fiz logo clara minha devoção pelo compositor e até minha certeza de que ele, se vivo, estaria a meu lado, como sempre esteve para assinar os incontáveis abaixo-assinados que elaborei para não se destruírem teatros como o Canecão, prédios históricos no Centro, e até edifícios “art noveau” e “art déco” em Copacabana e no Flamengo.

Acima, referi-me a luta que empreendi para salvar o Canecão do desperdício de sua pulverização. Pouco adiantou o abaixo-assinado aprovado pelo grande brasileiro Barbosa Lima Sobrinho. Cuidados também há de se ter sempre para não pôr abaixo período históricos-políticos não apreciados por muitos, mesmo a maioria. Certa vez, participei de mesa redonda que propôs castrar todos os nomes que nomeavam obras empreendidas pelo longo governo militar. Fui contra, utilizando-me de argumento de que história é história, consolidada em tempo determinado. Varrer-se a história será desrespeito aos pontos de referência. E até aos acontecimentos. E sem pontos de referência a história pode ficar às portas da barbárie, da intolerância e da truculência. Da ditadura de tiranos e caudilhos. Quem impõem seus humores e o que pensam ser suas verdades.

“Os pontos de referência de uma cidade se bastam. Já não carecem ser fotografados ou pintados. Suficiente é tê-los ao alcance dos olhos.” (Toni Morrison).

P.S: Breve o lançamento do livro da Editora Batel “Pandemia e Pandemônio”, com recomendações de Margarethe Dalcolmo, Nélida Piñon e Jerson Lima.


RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.