Por Ricardo Cravo Albin –
“Uma árvore que ilumina uma avenida com seu verde e sua sombra, ao ser abatida é crime contra um ponto referencial da cidade. Tanto quanto destruir-se um casarão colonial que fixou seu espaço na paisagem por mais de século.” (Lucio Costa)
Tom Jobim era defensor da preservação do Rio, de sua natureza e dos sentimentos mais altos de seu povo. Acabo de estudar sua vida um pouco mais, encargo que sempre me alegra o espírito. E me deparei com esta frase: “Esta cidade é um lugar paradisíaco, com essas montanhas, matas, esse céu azul lavado. Mas meu amigo Oscar Niemayer estava com razão quando me disse que uma cidade só é cidade até 800 mil habitantes”. Outra frase antológica do querido Tom é um clássico de sofisticada observação: “A diferença entre Nova York e o Rio é que lá é bom, mas é uma merda. Aqui é uma merda, mas é bom.”
Ficávamos horas a fio a bater papo ao telefone quando administradores bisonhos destruíam árvores, aumentavam gabaritos, ou punham abaixo antigos prédios históricos. Sem qualquer consideração e com despudor aos pontos de referência e de sedimentação.
Cito exatamente meu saudosíssimo amigo porque empreendi uma campanha pública quando sua morte acabrunhou a cidade, dando margem a administradores sugerirem ideias mil a fim de homenagear memória de apreço unanime. E logo começaram pelo mais fácil e imediato, substituir nomes instalados de logradouros públicos, o primeiro dos quais foi a Rua Visconde de Pirajá. Fui à luta e bombardeei a ideia, revisitando o momento histórico do começo de Ipanema quando (e por quê) o Visconde foi lá instalado. A que não faltaram sua consagração e bem querência pública à época e o desejo do novo bairro em reverenciá-lo.
Que imoralidade seria essa, a de desloca-lo de seu pedestal apenas pela fugacidade do passar do tempo e por ele não mais brilhar por estar morto há tantas décadas? Onde já se viu ousadia tamanha, esquecer os notáveis de seu tempo apenas pelo fato de não estarem presentes? O argumento fez recuar os novidadeiros. Por uma ou duas semanas… outra ideia de jerico logo aflorou para tentar derrubar a Vieira Souto de sua avenida faceando o mar onde – oh quanta propriedade, diziam os desmiolados – banhava-se a garota de Ipanema.
Pesquisei quem foi Vieira Souto, usei os mesmos argumentos de que ilustres e históricos não devem ser apeados de suas glórias e de que, sobretudo eles, os pontos de referência não podem ser removidos porque são objeto de afago e localização dos citadinos. Ademais, as grandes metrópoles sempre respeitaram isso, porque respeitam suas memórias, sinônimo de seus pontos referenciais. – Chega de destruir o que ainda resta de referência ao Rio, tão assaltado pela indigência cultural de seus dirigentes e vereadores.
Quanto ao Tom, acabei eu mesmo por indicar o Aeroporto do Galeão, porta principal do Rio, para abrigar o nome do maestro soberano, que tanto e tão bem cantou a cidade de São Sebastião. Por que? Porque ele substituiria apenas um galeão. Não um Santos Dumont…
A dignidade do Rio há que estar sempre presente em nossos corações e ações. Desse modo quando morrem brasileiros notáveis, eu começo a ficar de cabelo em pé porque logo surgem os bajuladores de ocasião a quererem tirar casquinha dos nomes de mortos incensados. Quando, aliás, fiz campanha contra a utilização do nome de Tom para destruir as memórias do Pirajá ou do médico benemérito Vieira Souto, fiz logo clara minha devoção pelo compositor e até minha certeza de que ele, se vivo, estaria a meu lado, como sempre esteve para assinar os incontáveis abaixo-assinados que elaborei para não se destruírem teatros como o Canecão, prédios históricos no Centro, e até edifícios “art noveau” e “art déco” em Copacabana e no Flamengo.
Acima, referi-me a luta que empreendi para salvar o Canecão do desperdício de sua pulverização. Pouco adiantou o abaixo-assinado aprovado pelo grande brasileiro Barbosa Lima Sobrinho. Cuidados também há de se ter sempre para não pôr abaixo período históricos-políticos não apreciados por muitos, mesmo a maioria. Certa vez, participei de mesa redonda que propôs castrar todos os nomes que nomeavam obras empreendidas pelo longo governo militar. Fui contra, utilizando-me de argumento de que história é história, consolidada em tempo determinado. Varrer-se a história será desrespeito aos pontos de referência. E até aos acontecimentos. E sem pontos de referência a história pode ficar às portas da barbárie, da intolerância e da truculência. Da ditadura de tiranos e caudilhos. Quem impõem seus humores e o que pensam ser suas verdades.
“Os pontos de referência de uma cidade se bastam. Já não carecem ser fotografados ou pintados. Suficiente é tê-los ao alcance dos olhos.” (Toni Morrison).
P.S: Breve o lançamento do livro da Editora Batel “Pandemia e Pandemônio”, com recomendações de Margarethe Dalcolmo, Nélida Piñon e Jerson Lima.
RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.
MAZOLA
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