Por Lincoln Penna –
No dia 19 de setembro, há cem anos, nascia em Recife Paulo Reglus Neves Freire, um dos mais destacados e influentes educadores brasileiros. Formado em direito sua paixão voltou-se para a área da qual o fez mundialmente conhecido pela concepção de educação, que passou a implantar em jornadas memoráveis desde a pequena cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte, com vistas à alfabetização de adultos.
Nessa experiência bem sucedida pelo que se convencionou chamar de método Paulo Freire, o analfabetismo foi o alvo a ser perseguido. Nessa comunidade alfabetizaram-se cerca de 300 adultos em 40 horas, o que atestava a validade daquela aprendizagem com base no vocabulário local. No entanto, mais do que aprender a ler e a escrever, esse contingente de pessoas passou a integrar a cidadania e desenvolveu uma leitura do mundo, seja do seu vilarejo regional, como do mundo mais amplo, das realidades de um universo maior e de suas contradições.
Também importa em sua contribuição o combate ao que chamou de “educação bancária”, isto é, aquela em que a relação do educador e educando são colocados em posições diferenciadas, de modo a simbolizar de um lado os que nada sabem e de outro aquele que tudo sabe. Assim, educando desprovido de saber, de um lado, e educador dono do conhecimento, do outro. Freire quebra essa lógica a demonstrar que essa relação é muito mais uma troca de saberes, porquanto quem não tem ainda acesso a normas cultas da linguagem e dos conteúdos programáticos tem, contudo, saberes que acumulou ao longo de sua existência. Com isso, introduz um processo de troca que coloca todos como capazes de se enriquecerem mutuamente.
Dessa maneira, Freire dava mais importância ao processo de aprendizagem do que ao conteúdo ensinado, como algo dado e a ser tão somente assimilado mecanicamente. No processo por ele proposto está presente a realidade vivida por aqueles que não tinham tido acesso à escolaridade no tempo devido, o que para a legislação eleitoral à época retirava um número considerável de brasileiros da cidadania plena, pois não tinham título de eleitor o analfabeto não tinha direito de voto e de ser votado e os tirava também do mercado de trabalho formal. Daí, a sensibilidade do governo do presidente João Goulart de tornar aquela experiência transformando-a num Plano Nacional de Alfabetização. O MEC buscou expandir a vários territórios do País os núcleos até então restritos ao Nordeste.
De setembro de 1963 até o golpe de abril de 1964 foram cerca de seis meses de uma demonstração de como é possível desenvolver um programa de inclusão das populações mais sacrificadas pela ausência até então do poder público. Para quem ainda jovem participou dessa revolução que se avizinhava nos horizontes de um sopro forte de esperança, é indescritível. Não é, portanto, por acaso que Paulo Freire foi vítima da mais violenta campanha movida pelas forças da reação, hoje assentada na presidência da República.
O educador que entendia a educação como um instrumento de libertação não pode ser reverenciado pelo que há de pior em nossa representação política.
Mas, para quem viveu aquela época e sorveu os seus benefícios, bem como quem teve a satisfação de poder interagir com o povo sedento de informação, na condição de mobilizadores, como eram chamados os que se encarregavam da alfabetização, para se evitar o termo de professor tornou-se inesquecível. Traços de fraternidade que fluía aos que tiveram o direito básico de cidadania. Eram camadas mais humildes de nosso povo submetidos ao que se poderia chamar de vítimas de crime de lesa humanidade, uma vez que impedia como impede que inúmeros indivíduos sejam colocados à margem dos benefícios da educação no seu sentido mais completo, a do esclarecimento sobre a negação de seus direitos fundamentais, que elas têm direito de conhecer tanto quanto os conteúdos ministrados das diversas áreas do saber.
Os livros escritos por Paulo Freire refletem o que ele sempre pensou em termos de formação de gente. A começar por sua premissa segundo a qual a educação para ser verdadeiramente um impulso emancipador, para que cada ser humano se liberte do não saber essencial à vida, tem de ser uma educação comprometida com a vida e com a formação de consciências capazes de interar e integrar as pessoas na vida ativa e nos interesses das comunidades em que vivem. Não existe uma educação isenta. Por isso, Paulo Freire foi um educador cuja perspectiva era constantemente a do olhar para o outro. Olhar que conduzia à emancipação de todos os que participam do processo educativo, sem o que a educação pode vir a ser um engodo.
Perseguido, tendo que se exilar, fez chegar onde esteve suas ideias transformadoras e até hoje é reconhecido e reverenciado, ao passo que os seus opressores e inimigos do conhecimento só são lembrados pelo que fizeram e têm feito de crimes contra os seus semelhantes. Ao voltar anistiado foi um dos construtores do Partido dos Trabalhadores e prestou os relevantes serviços na prefeitura de São Paulo, como Secretário de Educação da prefeitura de Luisa Erundina, sua companheira do PT, inclusive dando incentivo aos programas de alfabetização na sua gestão durante os anos de 1989 e 1991.
De sua autoria escreveu vários livros, mas um deles pode retratar essencialmente o que pensava sobre educação, síntese de todos que produziu. Trata-se da Pedagogia do Oprimido, que se ocupa justamente desse elo necessário entre os que coordenam como professor os conteúdos, aos que com ele desenvolvem a referida troca já mencionada anteriormente, tendo ambos esses atores do processo da aprendizagem simultânea a sociedade em que vivem, isto é, a realidade na qual e sobre a qual devem exercer o seu papel de ativos e conscientes seres humanos, mas preferencialmente aos mais pobres e vulneráveis. E escreveu esse livro entre os anos de 1967 e 1968, no exílio, período de muita repressão no Brasil da ditadura às vésperas do famigerado Ato Institucional de 13 de dezembro de 1968, o A.I-5.
Paulo Freire, no entanto, estará sempre presente junto àqueles que acreditam que dias melhores virão. Sua morte aos 76 anos, em São Paulo, deixou saudades e o desejo dos verdadeiros brasileiros que amam seu povo de que sua obra será, com certeza, um farol iluminando os caminhos para avançarmos em direção de novas conquistas.
Este registro é para todos os que o estimam e, por isso, à homenageá-lo na passagem de seu centenário de nascimento.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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