Por João Marcos Buch –
“SEU JUIZ BUCH, NÓS QUEREMOS DIVIDIR O PÃO!”
Era ainda muito cedo, raiar do dia, e eu já estava em pé. A noite de sono fora boa! A disposição acompanhava-me, o que eu considerava importante, visto que as horas seguintes seriam tomadas por nova inspeção e as responsabilidades sobre os meus ombros aumentariam. Nenhum juiz que coloca os pés no chão da prisão passa impune.
Tomei meu café da manhã e segui a caminho do presídio. Logo ao chegar à unidade, vi cinco ou seis mulheres, com crianças pelas mãos, entregando algum documento para os agentes da portaria. Parei o carro, abri o vidro da janela e acenei, cumprimentando-as. Elas acenaram de volta e se aproximaram. Estavam ali para deixar remédios que maridos e filhos presos necessitavam. Disse-lhes que traria novidades sobre a cadeia, ao que todas agradeceram. As visitas mantinham-se suspensas, em razão da pandemia, e as visitas virtuais eram mais compassadas e dificultosas. Por esse motivo pouco a par ficavam os familiares sobre seus entes presos, dependendo muito do juiz da execução penal para tanto.
Uma vez na prisão, passei aos atos inspecionais. Tudo estava conforme o esperado, o que, de certa forma, era terrível. O diretor se desdobrava, mas as contingências se repetiam, das menos graves, como a falta de informação a respeito de cursos técnicos particulares feitos à distância e sua validade para remição da pena, até as gravíssimas, como a carência de recursos humanos. E a superlotação, que a tudo prejudicava, mantinha-se como o principal problema.
Após conversar com a direção prisional, fui ao encontro dos representantes dos presos. Eles já haviam sido buscados das celas e me aguardavam em um espaço ventilado. Sentamos em círculo e começamos a tratar da cadeia. Em um determinado momento, quando o ponto foi alimentação, eles me perguntaram sobre a possibilidade do detento que não possuía família, para depósitos de pecúlio, poder se auxiliar da família de outro companheiro de cela. “Seu juiz Buch, nós queremos dividir o pão”, arremataram.
O estado não fornece alimentação suficiente, nada obstante a lei assim determinar.
Com a pandemia, as bolsas/jumbos que as famílias levavam foram proibidas. A solução foi o pecúlio, ou seja, o detento que trabalhasse na unidade usaria parte de seu salário para comprar os itens faltantes. Ainda assim o problema persistiu. É que a maioria dos detentos não trabalhava, não porque não queria, e sim porque o estado não possibilitava o trabalho. Na prisão em que eu estava, por exemplo, de 1.200 presos, apenas 20 desempenhavam atividades remuneradas, os demais, 1.180 presos, ficavam ociosos, nas celas, permanentemente. Desta forma, permitiu-se que a família auxiliasse, mensalmente depositando uma quantia certa para as aquisições necessárias. E então, chegou-se ao ponto levantado pelos presos na inspeção. Muitos deles não possuíam mais ninguém do lado de fora. Por isso, eles sugeriram que o detento que tivesse pecúlio e melhores condições pudesse dobrar o seu valor mensal e o número de itens, destinando-os assim ao detento mais necessitado.
Há quem diga que grupos para-legais (facções) se utilizam desses expedientes para se fortalecer, mas não é essa a questão. Causar dor e flagelo em um ser humano enfrenta barreiras psicológicas e sociais. A própria prisão, como local de cumprimento de pena, surgiu porque a sociedade “civilizada” não aceitava mais chibatadas, galés e maus-tratos aos condenados. Sob o falso pretexto de humanizar a pena, a crueldade, que antes era exposta, passou a ser efetuada longe dos olhos do “cidadão de bem”. Atualmente, como não é mais possível esconder a dor que é imposta aos condenados, para superar o obstáculo moral, o estado brasileiro equipara pessoas presas a animais peçonhentos, a selvagens monstros, bárbaros e cruéis. Essa estratégia não é inédita, ela se estende ao longo da história, desde o extermínio dos povos indígenas, passando pela escravatura e mais recentemente fundando o nazismo e o fascismo.
Com efeito, ultrapassada a barreira ética, torna-se perfidamente possível normalizar o açoite e o aniquilamento de corpos presos, em sua maioria corpos presos pretos. É sobre isso que se debruçam certas autoridades que, em violação à Constituição Federal e sua base humanística, cujos tratados e convenções estão internalizados, lançam estigmas sobre os encarcerados, visando moldar o sistema de justiça criminal, penitenciário e de segurança pública, com os estereótipos de preconceitos e intolerância. A morte de “criminosos” é comemorada (CPF cancelado) e o suplício dos “bandidos” na prisão é aplaudido.
Mas há que se resistir, “meu quintal é minha arena”, já disse um poeta. Na contramão do nefasto discurso de que bandido bom é bandido morto, trago assim mais essa história, dos detentos que queriam dividir o pão.
Ainda antes da pandemia, quando eu conseguia entrar com mais frequência nas celas, sempre presenciei presos dividindo entre si seus poucos e precários pertences. Eram roupas em trapos, remédios para febre, bolachas e sucos, que uns entregavam aos outros num ato de afeto.
No cárcere há vida, talvez uma vida que não encontra similaridade em outros lugares! Apesar do sofrimento, degradação, humilhação e profanação humana que a prisão produz na pessoa do detento, apesar da prisão forçar a convivência, sem privacidade, entre pessoas distintas, ainda há espaço para solidariedade, para bondade. Qual maior prova do que dividir o pouco do pão que se tem?
Certamente, as pessoas que estão presas são desejosas e possuem as mesmas características, boas ou ruins, a que todos os seres humanos em todas as sociedades estão submetidos. O homem não é apenas belo, o horror também lhe pertence e isso não é exclusividade de quem está preso ou de quem está solto, Hobbes e Rousseau já se debruçaram sobre isso. O fato é que tenho visto mais fraternidade dentro do que fora da prisão.
Atentos, os presos esperam pela liberdade e, enquanto ela não vem, na falta do estado e das responsabilidades que os governos deveriam assumir, eles buscam entendimento e projetos de vida coletiva. Com uma resistência monumental, por alguns momentos, eles transformam o inferno em um lugar de sobrevivência.
De minha parte, sou uma pessoa com voz e que não pode se calar. Devo me posicionar quando o que está em jogo são os direitos humanos, as garantias constitucionais, a lei; devo sair dos palácios da justiça e tatear a realidade, sem filtros e depois contar tudo que vi.
Em tempos de ódios, babas brancas e olhos injetados, o Brasil precisa de união, fraternidade, justiça social, precisa dividir o pão. As lições nesse sentido, vindas de dentro do cárcere, eu novamente aprendi naquele duro dia de inspeção.
JOÃO MARCOS BUSH é juiz de direito da vara de execuções penais da Comarca de Joinville (SC) e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
A coluna ‘Tribuna dos Juízes Democratas’, dos juízes e juízas da AJD, é associada às colunas ‘Avesso do Direito’ do jornal Brasil de Fato e ‘Clausula Pétrea’ do site Justificando. (Fonte: Justificando)
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