Por Aderson Bussinger –
Estamos rememorando (não comemorando!) os 41 anos da Lei de Anistia, de 1979, que, sem dúvida, foi um avanço, no contexto de resistência em que nos encontrávamos na década de 70, fazendo cessar exílios forçados, encarceramentos, afastamentos arbitrários de cargos públicos de civis e militares, mas jamais podemos deixar de dizer e denunciar que, em seu bojo, além das restrições que somente foram em grande parte resolvidas por legislações posteriores, a lei 6. 683 de 28 de agosto de 1979, acabou, dubiamente, também servindo para impunidade de torturadores e outros criminosos do regime militar de 1964. Tive o privilégio e honra de ter sido amigo pessoal do Advogado e ex-deputado Modesto da Silveira, que junto com o também Advogado e ex-deputado Marcelo Cerqueira, foram um dos principais negociadores desta lei e pude através do saudoso Modesto ouvir por muitas vezes relatos do quanto pretendiam os militares que esta lei fosse ainda mais restritiva, de modo que resultou, em verdade, segundo expressão do próprio Modesto, no retrato da correlação de forças naqueles “idos de 79”. Por isso, dispensa-se qualquer comemoração, para, em seu lugar, provocarmos a reflexão e sobretudo a resistência.
O especial momento de avanço conservador que estamos vivendo no mundo, outrossim, por outro lado, o mais oportuno e pedagógico para discutirmos a anistia, na perspectiva do presente, pois, além da memória dos crimes contra a humanidade perpetrados pelas ditaduras militares, inclusa a brasileira, assistimos atualmente a retomada e insistência em diversas destas práticas autoritárias, e – o que é pior ! – sob a vigência de regimes formalmente democráticos, Estados de Direito na forma de suas constituições e leis, republicanos, fundados no mesmo elenco de direitos que estão contidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, após a barbárie da II guerra mundial, e que hoje, sob tal roupagem jurídica, dão lugar atualmente a velhos e novos abusos.
Estou me referindo, especialmente, aos dois últimos crimes cometidos contra dois cidadãos negros no Estados Unidos da America, George Floyd e Jacob Blake, assim como, aqui no Brasil, os elevadíssimos números da violência policial contra negros, notadamente jovens. Este deve ser, a meu ver, um dos marcos de discussão da anistia política, que, mais do que livrar opositores políticos do cárcere e punir os responsáveis pelos crimes, integra um rol de outros remédios, igualmente indispensáveis ao enfrentamento do vírus do neofascismo, persistente e moderno, onde há espaços estatais, consciências e pessoas a defende-lo e implementá-lo.
Pois bem, a tortura, seguida de morte, sofrida por George Floyde e a tentativa de assassinato de Jacob Blake, ambos episódios exibidos pela mídia em tempo real, são emblemáticos do quanto o autoritarismo,(nestes casos enquanto instrumento do racismo), está presente mundialmente, pois, concomitantemente, sabemos que fatos semelhantes e até mais horrendos que estes, ocorrem diariamente no Brasil e em toda a América Latina. Isto é assim, porque as liberdades democráticas pelas quais lutamos em 1979, quando da edição da Lei de Anistia, seguem sendo desprezadas e, dependendo do tipo de governo, o grau de desprezo é maior ou menor, mas nunca deixou de existir, para sermos honestos em relação as estatísticas sobre violências estatais que são também praticadas sob governos socialdemocratas, progressistas, com a participação, majoritária ou não, de partidos que se reclamam da esquerda. Quem não se lembra das ocupações militares durante a última Copa do mundo e Jogos olímpicos realizados no Brasil. E as execuções em favelas do Rio que ocorreram em todos os governos passados?
Pois bem, a máquina estatal, o judiciário, Ministério Público, policias civis e militares, forças armadas, não possuem uma cultura e protocolos de ação assentados em direitos humanos, mas sim na centralidade da defesa do patrimônio, do encarceramento em massa ao invés da investigação técnica dos crimes, da punição em lugar da reabilitação, educação e busca de mínima sociabilidade. Nem vou discorrer aqui sobre como são ocupadas tais estruturas do Estado, como é definido politicamente os seus comandos e direções, o nível de interferência dos governos e classes sociais em cada uma destas estruturas estatais, bem como faz-se desnecessário também registrar, por outro lado, que a maioria absoluta de seus membros é composta de pessoas sérias, trabalhadoras, que de boa fé exercem as atribuições de seus cargos. Não se trata aqui de nenhum julgamento moral.
A questão está na gestão política do Estado e se, portanto, a sua direção parte de uma premissa de respeito, acatamento ,ou não, aos direitos humanos, e, em algumas vezes, mesmo que sinceramente defendam tais direitos, se possuem poder suficiente para implementá-los na administração do Executivo e Judiciário. Voltando ao tema da anistia, necessário refletirmos (e nos conscientizarmos) que estamos sob risco de perdermos parte substancial dos avanços que conquistamos nos últimos 41 anos. Em primeiro lugar, a começar pelo tema do processamento e punição dos criminosos do último regime militar, que, ante a atual diretriz conservadora da Procuradoria Geral da República e posicionamentos do judiciário, o quadro não é nada promissor. Em segundo lugar, a questão da interrupção das buscas do paradeiro dos desaparecidos políticos, como se pretendessem que seus familiares fiquem definitivamente sem sequer poder enterrar dignamente seus corpos; Em terceiro lugar, a questão da concessão das anistias faltantes, aqueles homens e mulheres perseguidos que até hoje aguardam decisão da Comissão Nacional de Anistia ou do Judiciário e que, em lugar disto, estão sendo, muitos destes,(como o recente caso dos ex-cabos da Aeronáutica), vítimas de processos arbitrários de revisões de suas anistias. Em quarto lugar, o pouco avanço, ainda, em relação a investigação e responsabilização das empresas nacionais e internacionais que financiaram a ditadura, como a Volkswagen, FIAT, EMBRAER e outras tantas; Em quinto lugar, os retrocessos em relação ao próprio direito de memória, a guarda de documentos históricos sobre a repressão, o desmonte do projeto de construção do memorial da Anistia em Minas Gerais, a falta de tombamento público dos prédios que abrigavam os antigos DOPS, o risco permanente que corre a manutenção do próprio site da comissão nacional de anistia, que ninguém garante que “saia do ar” ou seja extinto a qualquer momento; Em sexto lugar, o fim das políticas públicas de tratamento psicológico dos perseguidos, torturados e seus familiares, as clínicas de testemunhos e outras iniciativas de acolhimento dos que foram vítimas de violações de direitos humanos; Em sétimo lugar, o desmonte da própria comissão de anistia que, retirada do Ministério da Justiça e transferida para a gestão da Ministra Damares,( cujos pronunciamentos sobre a anistia dispensam quaisquer comentários) órgão que se encontra atualmente presidido por ex-assessor do Presidente Bolsonaro, opositor declarado e confesso da anistia política, em composição repleta de militares defensores do sepulto regime militar e que atua mais enquanto um órgão deliberadamente anti-anistia do que propriamente uma comissão voltada para analisar e julgar, com isenção, os casos que lhe são submetidos. Enfim, creio que estes setes itens, acima, todos igualmente importantes, independente da ordem numérica, mesmo superficialmente aqui abordados, são capazes de demonstrar o imenso abismo e retrocesso que estão jogando a temática da memória, justiça e verdade no Brasil sob o atual governo neofascista.
Encerro este breve texto dizendo que, apesar da situação desfavorável acima relatada, no que tange questão da justiça de transição no Brasil, temos também razões para crer que vamos superar este difícil momento, “fora da curva”, e a prova disto são os movimentos vinculados a esta causa que não esmoreceram, seguem lutando, protestando, realizando diversos eventos nacional e internacionalmente, plenárias de entidades e coletivos de defesa vem sendo organizadas, com destaque para as Plenarias de São Paulo e Rio de janeiro, comissão nacional de interlocutores de entidades de anistia política, comissões e núcleos de memória nas OABs, sindicatos, projetos acadêmicos sobre o tema, enfim, há um campo heroico de resistência e de luta dos que somente vão descasar, no Brasil, quando realmente tivemos verdade, memória e justiça, assim como a efetivação, na prática, de uma anistia ampla, geral e irrestrita.
ADERSON BUSSINGER – Advogado sindical, diretor do Centro de Documentação e Pesquisa da OAB-RJ, conselheiro da OAB-RJ, membro efetivo da CDH, membro do IAB, ABJD e ABRAT (Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas). Colunista e membro do Conselho Editorial do jornal Tribuna da Imprensa Livre, integra a Comissão Nacional eleita de Interlocutores do Fórum Nacional em Defesa da Anistia Constitucional.
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