Por Lincoln Penna –
A entrevista do general Eduardo Villas Bôas transformada em livro sob a organização do antropólogo Celso de Castro foi elucidativa quanto ao que pensa a atual média da oficialidade brasileira. Se comparada às gerações precedentes houve uma mudança não desprezível, da mesma forma que se buscarmos as primeiras gerações do período pós-republicano encontraremos comportamentos igualmente diferenciados.
Na corporação continuam a prevalecer os princípios da disciplina e da hierarquia como formadores do ordenamento dos corpos militares. Há, no entanto, diferenças que podem ser identificadas quanto ao emprego desses princípios ao longo do tempo. E estou convencido de que essas diferenças aconteceram durante o período da República brasileira, e foram motivadas por fatores que penetraram fortemente na visão do mundo político originalmente concebido pelas primeiras gerações.
As primeiras gerações, influenciadas pela filosofia do Positivismo, construíram uma perspectiva de nação soberana e grandemente voltada pela ideia de soberania nacional.
Possuía também uma atitude de repúdio aos representantes da velha Casa Grande, subserviente ao colonialismo e neo-escravocratas, uma vez que não se dissociaram do Brasil arcaico, até porque o arcaísmo era e sempre foi o seu projeto de nação. Essa atitude se expressou nas revoltas da Escola Militar durante e após a implantação da República, no ciclo das revoltas do Tenentismo da década de 1920 e nos anos do desdobramento do golpe de 1930.
O Levante de 1935 teve participação militar, principalmente nas baixas patentes tanto da hierarquia militar quanto da oficialidade, em grande parte pela liderança incontestável de Luiz Carlos Prestes. Mas, dele decorreram as primeiras e mais explícitas manifestações de desprezo pelas mudanças em profundidade identificadas como sendo necessariamente de orientação comunista, o mesmo comunismo que causara certo desconforto quando da Revolução Russa de 1917. Neste sentido, a ideia de emancipação nacional que a República chegara a despertar foi logo deixada de lado em razão de se desviar para a pauta revolucionária do comunismo.
A Segunda Guerra Mundial só reforçou essa ideia e a geopolítica norte-americana se incumbiu de mudar a visão dos militares brasileiros ao associarem o nazismo ao comunismo. Logo, derrotado o regime hitlerista chegara o momento de todos se ocuparem na luta contra a penetração do comunismo e em especial no continente americano. A criação da Escola Superior de Guerra (ESG) em 1948 representaria uma decisiva mudança na cabeça dos militares, agora e mais do que nunca impregnados pelo vírus anticomunista.
Daí a permanente desconfiança nas correntes reformistas, trabalhistas a se empenharem no combate à desigualdade social.
E se a Guerra de 1939-1945 foi um dos marcos dessa mudança, a Revolução Cubana de 1959 alcançou o ponto mais elevado dessa teoria da conspiração, segundo a qual os comunistas estavam prestes (sem trocadilho) a alcançar o seu intento. Ou seja, criar várias revoluções na América Latina tendo como modelo a Cuba revolucionária. A famosa consigna “América para os americanos”, do presidente James Monroe em sua Mensagem ao Congresso em dois de dezembro de 1823, nunca foi tão apropriada para definir a estratégia dos Estados Unidos para a América Latina. E em decorrência da Revolução Cubana o Departamento de Estado dos EUA desencadearia operações visando à criação de governos alinhados com a política do Tio Sam.
A conseqüência foi uma sucessão de golpes de Estado tendo início em 1964 com o golpe que destituiu o presidente João Goulart e foi estendido à Argentina, Uruguai, Paraguai e Chile, além da Bolívia. Portanto, todo o cone Sul da América, numa espécie de concretização na prática da equivalente Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Esta realidade se impôs de tal maneira que modificou consideravelmente a visão de mundo dos militares, que no caso brasileiro fez enterrar a premissa de que o exército brasileiro, em especial desde sua constituição, sempre teve uma relativa autonomia em relação às classes dominantes do país. Jamais se prestou a ser uma guarda pretoriana.
Com isso, quebrava em certa medida a associação das forças militares à ordem política dominante. E o golpe republicano, de caráter progressista, assim se enquadrou nessa lógica, de que a maior afinidade desses membros não seria com os colarinhos brancos, donos de terras, mas com o povo. Este militar do exército sucumbiu aos acontecimentos que tornaram os donos do poder mais reativos às demandas populares, na esteira de um capitalismo mais agressivo. E hoje o que se apresenta na corporação é um militar que pretende assumir plenamente a figura de quem deveria proteger como representantes do povo.
O que está em curso é um golpe orgânico, que atingiu a vida militar e a de seus integrantes. Seus desdobramentos são imprevisíveis, e só com o tempo saberemos o seu destino.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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