Por Lincoln Penna –
Maria Yedda Leite Linhares foi uma professora. Era assim que gostava de ser chamada.
E a exemplo de tantas mulheres que exerceram o magistério, Yedda era uma educadora no sentido mais amplo da palavra, aquele sentido no qual mais do que ensinar conteúdos programáticos se ensina cidadania. Sim, fez de sua atividade profissional um instrumento de formação de um alunado que passaria a tê-la como referência, e cuja memória está presente sempre. Exemplo de dignidade, de dedicação e de amor aos que com ela conviveram.
Essas linhas escritas às vésperas de seu centenário de nascimento (03 de novembro de 1921) são ao mesmo tempo um testemunho e uma homenagem de quem não pôde expressar em vida a admiração e o reconhecimento pela oportunidade de tê-la conhecido. A primeira vez que a vi foi por intermédio de meu pai, Antônio Gomes Penna. Ambos lecionavam na Faculdade Nacional de Filosofia da então Universidade do Brasil e o contato aconteceu por acaso na entrada do prédio situado na Avenida Antônio Carlos, antes mesmo de ter ingressado no Curso de Ciências Sociais.
Logo na primeira impressão ficou marcada a fisionomia de uma mulher de forte personalidade, de trato fácil e de insinuante capacidade de sedução. Cercada por um grupo de alunos, também eu me deixei levar pelo prazer de sua presença. Corria o ano de 1963 e meu desejo era o de freqüentar aquela unidade de ensino, fato que ocorreria muito embora não tivesse tido a oportunidade de ter sido seu aluno diretamente.
Catedrática de História Moderna e Contemporânea, Yedda se distinguia dos demais docentes titulados pela relação amistosa com os alunos. Com ela não tinha distância, muito menos a soberba exibida pelos catedráticos, salvo as exceções que só confirmam a regra. Assim, não era de se estranhar vê-la a conversar dentro e fora da sala de aula com quem a procurasse para tirar dúvidas ou simplesmente papear.
Como colega, estivemos juntos após o golpe em situações as mais diferentes, inclusive no exterior. Ela cassada pela ditadura fora lecionar fora do país. Eu saíra da cadeia graças ao Consulado francês que me concedera bolsa de estudos. Estava voltado para a realização de meu mestrado em Toulouse e em seguida o doutoramento em Nanterre, em Paris. Yedda foi uma das pessoas que mais me incentivaram para a conclusão de minha pós-graduação.
Com a anistia, Yedda foi reintegrada e passamos a trabalhar na UFRJ, assim como em duas outras universidades particulares. Só assim passei a ter uma convivência de maior proximidade, o que muito me ajudou, seja pelo seu tirocínio, indispensável para quem lida com as conjunturas históricas, ou mesmo no que se refere ao enfrentamento das intempéries da vida.
Quando do centenário da República escrevi por encomenda da Editora Nova Fronteira o livro Uma História da República e solicitei a Yedda o prefácio, no que ela prontamente atendeu e eu o reproduzi na segunda edição já com o título de República brasileira, tiragem um pouco modificada e ampliada. Era por parte dela mais uma demonstração de generosidade.
Afinal, o livro consistia numa sistematização de nossa história recente. Na verdade trata-se de um manual paradidático.
Reintegrada após a Anistia aceitou tarefas, como a de assumir secretarias de Educação em governos populares e progressistas, ou mesmo em participar de debates com os estudantes, ainda sob um clima persecutório da banda podre da ditadura, a despeito da transição negociada pelo alto. De novo, a sua generosidade e o seu dever de cidadã falaram mais alto. E assim foi até os seus últimos dias de vida. Lucidez e coragem se misturavam no enfrentamento dos anos de chumbo. Assim como a coragem lúcida em momento algum lhe faltou, sábia na compreensão das contradições.
Dos que se beneficiaram de seus ensinamentos vários são os exemplos hoje em dia labutando no mundo acadêmico e científico. Todos sabem e honram o fato de terem sido discípulos de Yedda, que a eles sempre dedicou o seu melhor para que se convertessem em quadros docentes inspirados pelos seus ensinamentos. Relacioná-los seria oportuno, mas para evitar omissões basta que os consideremos como uma grande equipe derivada de uma mesma cepa, aquela que está presente na memória de todos.
Maria Yedda faz falta em nosso ambiente acadêmico e intelectual, sobretudo, na parceria dos que estão voltados para formar caráter de cidadãos comprometidos com a sorte do povo, tarefa para a qual em momento algum deixou de reafirmar. Faz falta a sua presença nesses momentos de obscurantismo, pois o seu brilho desprovido de empáfia e movido pela indignação em muito nos fortaleceria para o enfrentamento dos riscos mais profundos do retrocesso em curso.
Bem que entre nós, Yedda poderia nos ajudar a disseminar o bom senso aliado à determinação das grandes mudanças que precisamos construir ao lado dos que mais sofrem com a miséria da política em vigor, que tem infernizado as nossas vidas, principalmente a dos mais afetados por ela, os eternos vulneráveis e desvalidos de uma estrutura de poder absurdamente desigual, socialmente falando. Mas, ao relembrar sua existência estamos certos de que ela vive em nós e nos inspira a todo instante.
Até porque ela é a expressão daquilo que o historiador francês Lucièn Febvre, fundador da École des Annales juntamente com Marc Bloch, dizia a respeito da missão do historiador: “é preciso ser alguém de seu tempo e para seu tempo”. A tarefa, pois, consiste em estar imerso na realidade vivida e posicionar-se diante dos desafios da vida.
Yedda cumpriu essa tarefa admiravelmente.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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