Por Carlos Mariano –
No dia 28 de abril completou 93 anos de história, uma das escolas de samba mais tradicionais deste país: a querida Estação Primeira de Mangueira. Não vou me deter a falar dos grandes baluartes fundadores e apaixonados pela Verde Rosa, como Cartola, Carlos Cachaça, Delegado, Nelson Cavaquinho, Mestre Comprido, D. Zica, Nelson Sargento, Alcione, Beth Carvalho, Leci Brandão e outros mais. Mas, vou, fazer uma breve reflexão na história da Mangueira sobre a importância dela para a transformação da favela da Mangueira em lócus da diáspora negra carioca.
Júlio Cesar Tavares em sua obra “Diáspora Africana: A experiência Negra de Interculturalidade”, define a ideia de diáspora africana como a ligação dos afrodescendentes com sua ancestralidade. Através de uma representatividade identitária e cultural, que vai sempre fortalecer a presença dos sujeitos dessa ancestralidade nas práticas no mundo em que vivem os afrodescendentes, lutando dessa forma contra a invisibilidade do negro imposta pelo racismo estrutural.
É justamente essa luta que ocorre no fenômeno da criação das escolas de samba no fim da década de 1920. A Estação Primeira de Mangueira, criada no morro, é fruto da luta pela moradia das populações negras na Primeira República. A criação da escola de samba herdada do Bloco dos Arengueiros se tornou a representatividade da cultura deixada pela ancestralidade africana.
O samba será a alma sonora dos morros e vielas cariocas, herdado dos batuques africanos, trazido para o Brasil por escravizados originários de Angola e do Congo, principalmente.
Mas para essa alma negra se fixar nos morros do Rio de Janeiro e depois transcender para o encantamento geral da cidade, negros e negras marginalizados pelo racismo estrutural da Primeira República vão ter que lutar contra a política de remoção de morros e favelas que imperou na cidade do Rio de Janeiro na época.
O surgimento da Verde Rosa em 1928 está ligado intimamente à luta por moradia da população negra descendentes de escravizados libertos em 1888, depois de muita luta, mas que continuou sendo discriminada e excluída da pauta do progresso parisiense da nossa elite tropical.
No livro “Escolas de Samba: Sujeitos Celebrantes e Objetos Celebrados”, Nelson da Nóbrega Fernandes relata, de forma brilhante, como a fundação da escola de samba Mangueira, por Cartola, Carlos Cachaça e companhia, está relacionada à vitória dos moradores da Mangueira contra a política de remoção de moradores de favelas do Rio de Janeiro.
Nóbrega conta em seu livro que, por várias vezes, os moradores do morro de Mangueira foram ameaçados por ações judiciais para que fossem removidos dali.
Carlos Cachaça, um dos poetas fundadores da Verde e Rosa, foi sujeito dessa história de ocupação e afirmação da comunidade de Mangueira no morro. Cachaça contou, em entrevista ao jornalista e pesquisador Sérgio Cabral, que morava com o pai no Morro dos Telégrafos, numa vila que pertencia à Estrada de Ferro Ferroviária. Portanto, a favela da Mangueira vai se forjar a partir de terrenos que serão ocupados por famílias de trabalhadores e desabrigados nas encostas do Morro dos Telégrafos.
O samba é filho da dor, da discriminação de cor e de classe que ocorria na Primeira República. Ainda no seu relato a Cabral, Cachaça conta que quando garoto saiu da casa do pai para morar com o padrinho Tomás Martins em um dos terrenos da ocupação nas cercanias do Morro dos Telégrafos. O local deu origem à favela da Mangueira. Tomás, português astuto, negociava arrendamentos de terrenos nos morros em torno do Telégrafo com o poderoso Alberto Negreiros Saião Lobão, o Visconde de Niterói, considerado o verdadeiro dono do Morro dos Telégrafos e adjacências. Como Tomás era analfabeto, Cachaça passou a emitir os recibos dos barracos alugados na emergente favela da Mangueira.
Ainda nesse fabuloso depoimento a Cabral, citado na obra de Nóbrega, Carlos Cachaça afirma que seu padrinho Tomás foi o criador e líder da ocupação da favela da Mangueira.
Toda essa transação de ocupação, compra e venda de terrenos e barracos na comunidade de Mangueira, foi batizada com a anuência do prefeito Pereira Passos, através do decreto Municipal nº 391 que estabeleceu normas para construções de moradias no município do Rio, na época Distrito federal. O decreto proibia construções de barracos e casas de madeiras no centro da cidade e na Zona Sul do Rio. Mas, abria exceção para os morros desabitados, onde poderiam ser construídos através da obtenção de licença da burocracia. Assim, Pereira Passos expulsava das zonas ricas da cidade, negros e trabalhadores marginalizados. Empurrando-os para as áreas periféricas do município do Rio. Nascia assim, a chamada “cidade partida”, batizada no célebre livro de Zunir Ventura.
A escola de samba Estação Primeira de Mangueira é, portanto, produto social dessa saga dos negros afrodescendentes por moradia e trabalho na pós-abolição. Essa nação negra chamada Mangueira, maior escola do planeta, como gostava de bradar o saudoso sambista mangueirense, Luisito, representa hoje, nos seus 93 anos de glória e conquistas, a afirmação do povo preto como construtor do imaginário nacional do que é ser brasileiro aqui e fora do país.
Apesar de toda a perseguição e marginalização sofrida, a negritude produziu uma manifestação cultural que fez do Rio de Janeiro uma cidade negra na sua alma cultural e leva essa cultura e encantamento aos quatro cantos do mundo.
Parabéns a você, Mangueira!
Bibliografia:
Da Nobrega, Nelson Fernandes. Escolas de samba: sujeitos celebrantes e objetos celebrados. Prefeitura do Rio de janeiro, 2001.
Cabral, Sérgio . Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Lazuli Editora, Rio de janeiro 2011.
Tavares, Júlio Cesar. Diáspora Africana: A experiência Negra de Interculturalidade. Nº 10 dos Cadernos PENESB , 2010.
CARLOS MARIANO – Professor de História da Rede Pública Estadual, formado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisador de Carnaval, comentarista do Blog Na Cadência da Bateria e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
MAZOLA
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