Por Jorge Folena –
Desde a promulgação da Constituição de 1988, o que tem despertado a atenção de historiadores, cientistas sociais, jornalistas e juristas é a aplicação recorrente, por parte de sucessivos governos civis, do artigo 142 da Constituição para a “garantia” da Lei e da Ordem (GLO), com o emprego das Forças Armadas (FFAA) para substituir ou suplementar o papel da polícia.
Assim, diante da atual conjuntura do país, considero necessário, por meio deste trabalho, analisar as origens da GLO, para verificar se esse instituto é compatível com o sistema republicano, inclusive a partir da experiência da Constituição de Weimar de 1919.
Isto porque, em agosto de 2019, diante de pressões políticas de grupos autoritários e da tentativa de fortalecimento da extrema-direita na Alemanha, retomou-se o debate naquele país sobre “os três erros fundamentais da Constituição de Weimar”, que então completava cem anos.
Os três erros daquela constituição seriam os artigos 24, 48 e 53, que previam em linhas gerais que o presidente poderia dissolver o parlamento; que o presidente, com a ajuda das forças armadas, poderia intervir para restabelecer a segurança e a ordem pública; e estabelecia a nomeação do primeiro ministro como atribuição do presidente.
Como afirma Kelerhoff, tais regras eram “herança da constituição do império”, que a ordem republicana, introduzida em Weimar em 1919, não foi capaz de superar e possibilitaram a ascensão do nazismo de Hitler, na Alemanha, a partir de 1933.
Para nós no Brasil é muito importante essa lição do passado não resolvido pela República de Weimar, pois passamos a conviver sistematicamente com ameaças de autoritarismo e incentivo à barbárie.
As ameaças alcançam até mesmo as instituições políticas, acuadas pela possibilidade de uma suposta “intervenção militar”, que, segundo seus apologistas, teria fundamento a partir do artigo 142 da Constituição, que prevê o papel das FFAA, ali incluído o seu emprego em operações de GLO, igual ao que previa o artigo 48 da Constituição alemã de 1919, que manteve uma regra do antigo regime monárquico, incompatível com a república.
Em razão disso e das ameaças do emprego das FFAA em casos de segurança interna do país, na eterna “tutela dos militares” sobre a política e os civis, é preciso ressaltar que o artigo 142 é uma construção incompatível com a noção de república e soberania popular.
Referido artigo representa um traço do antigo regime absolutista, construído a partir do racionalismo que colocou o monarca acima do povo e como representante máximo da nação, como fez Pedro I, ao fechar o parlamento (“A Noite da Agonia”, 12/11/1823) e outorgar a Constituição de 1824, cujos artigos 10 e 11 previam que “os poderes políticos (…) são quatro: o Poder Legislativo, o Poder Moderador, o Poder Executivo e o Poder Judicial” e que “os representantes da nação brasileira são o imperador e a Assembleia Geral”.
Ou seja, o imperador colocava-se como uma instituição (“o representante primeiro da nação”) e acima do povo, com base em construção racional difundida por Hegel, a partir de sua Filosofia do Direito, para justificar a monarquia constitucional, principalmente depois do Congresso de Viena (1814-1815), que tinha entre seus seus postulados a restauração da antiga ordem absolutista, mesmo que sob a forte intervenção militar contra os movimentos liberais.
É nesse sentido que a Constituição de 1824, no artigo 98, previa que: “O Poder Moderador é a chave de toda a organização Política, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independência, equilíbrio, e harmonia dos mais Poderes Políticos.”
O artigo 102 da Constituição de 1824 estabelecia que “o Imperador é o Chefe do Poder Executivo, e o exercita pelos seus Ministros de Estado”; e, pela redação do artigo 148: “ao Poder Executivo compete privativamente empregar a Força Armada de Mar, e Terra, como bem lhe parecer conveniente à Segurança, e defesa do Império.”
Assim, verifica-se que a força militar poderia ser empregada pelo imperador para garantir “a segurança” contra as rebeliões liberais promovidas por populares ou grupos oposicionistas à monarquia, no âmbito interno do Estado brasileiro.
Esta utilização dos militares (prevista no artigo 148 da Constituição de 1824) segue a lógica do princípio da restauração, conforme proposto no Congresso de Viena (1814-1815), com o uso da intervenção militar interna para reprimir as ideais liberais e garantir a velha ordem absolutista, como forma de manter a lei e a ordem em favor do antigo regime, como se verificou na derrubada da Comuna de Paris (1871).
Ora, a República deveria ter posto fim ao emprego das forças militares na manutenção da segurança interna; porém, a Constituição de 1891 manteve regra idêntica à do absolutismo, ao dispor em seu artigo 48 que “compete privativamente ao Presidente da República (…) exercer ou designar quem deva exercer o comando supremo das forças de terra e mar dos Estados Unidos do Brasil, quando forem chamadas às armas em defesa interna ou externa da União”.
Vê-se que as Forças Armadas, artífices da derrubada da monarquia, mantiveram para si a titularidade do emprego da “defesa interna”, que passou a ser aplicada contra a população negra, mestiça e pobre (Canudos, Contestado etc), para garantir a manutenção do sistema exploratório vindo da escravidão, iniciado no Brasil colônia, que passou pelo império e continuou com a república.
Seguindo essa diretriz de emprego das FFAA na ordem interna, a Constituição de 1934 dispôs, no artigo 162, que “as forças armadas são instituições nacionais permanentes, e, dentro da lei, essencialmente obedientes aos seus superiores hierárquicos. Destinam-se a defender a Pátria e garantir os Poderes constitucionais, e, a ordem e a lei.”
Da mesma forma, a Constituição de 1946, no artigo 177, dispunha que “destinam-se as forças armadas a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem”; como a Emenda Constitucional 1, de 1969, que previa no artigo 91 que “as Forças Armadas, essenciais à execução da política de segurança nacional, destinam-se à defesa da Pátria e à garantia dos poderes constituídos, da lei e da ordem.”
A Constituição de 1988, documento jurídico da “Nova República”, igualmente, em seu artigo 142, dispõe que “as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”
O ponto diferenciador da Constituição de 1988 em relação às constituições anteriores foi a extensão a todos os Poderes constituídos da capacidade de convocar as Forças Armadas, para sua própria garantia e da lei e da ordem. Tal ampliação foi para tentar neutralizar eventuais abusos autoritários do Poder Executivo, na medida em que os outros poderes agora podem também requisitar o emprego da Lei e da Ordem, o que pode ser feito inclusive pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Congresso Nacional, contra os arroubos autoritários do Poder Executivo.
Entretanto, esta ampliação do conjunto de autoridades que podem requisitar a GLO representou a possibilidade de um descontrole institucional ainda maior do uso dos militares na segurança interna, pois esta não requer a observância das rígidas regras impostas para a decretação de estado de defesa (artigo 136 da Constituição), do estado de sítio (artigo 137 da Constituição) e da intervenção (artigos 34 e 36 da Constituição), para os quais se exige que sejam previamente ouvidos os Conselhos da República e de Defesa Nacional e que tenham autorização do Congresso Nacional; que são institutos jurídicos que, numa ordem liberal, são de uso extremo de um estado de exceção.
Vemos então que convocar uma GLO é muito mais simples do que declarar um estado de exceção; porém, uma vez que esta seja instaurada, as forças militares podem, em tese, ser empregadas para impor um regime autoritário, sob um manto de falsa legalidade constitucional.
Por tudo isso, é importante que a sociedade se una para expurgar esse instituto de uma velha ordem, já superada, pois não podemos permanecer no mesmo erro cometido pela Constituição de Weimar, ao manter uma regra do antigo regime feudal absolutista, incompatível com a República.
JORGE FOLENA – Advogado e Cientista Político; Doutor em Ciência Política, com Pós-Doutorado, Mestre em Direito; Diretor do Instituto dos Advogados Brasileiros e integra a coordenação do Movimento SOS Brasil Soberano/Senge-RJ. É colunista e membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre, dedica-se à análise das relações político-institucionais entre os Poderes Legislativo e Judiciário no Brasil.
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